SOBREVIVI PARA CONTAR
Moby Dick: Um mergulho nas profundezas do oceano e da alma
Alessandro Abdala*
"_ Oh! Acab exclamou Starbuck -, não é muito tarde, mesmo hoje, o terceiro dia, para desistir.
Vê! Moby Dick não te procura.
És tu, que loucamente o buscas!"

"Moby Dick" não é uma simples aventura de "caça à baleia". Essa obra monumental mergulha fundo nas profundezas da alma humana e revela nosso lado mais sombrio.

Até que ponto a busca por um objetivo permite prejudicarmos a nós e a nossos semelhantes?
Este texto não busca discutir profundamente o clássico de Melville – não ousaria tanto; estudiosos dedicados já o fizeram com grande mérito. O objetivo é divulgar a obra para quem não a conhece ou reacender o interesse daqueles que a leram de forma superficial.

Comecei a ler cedo, meninote ainda, e tive oportunidade de conhecer grandes e memoráveis livros. Emocionei-me com as (des)venturas de Riobaldo e Diadorim em Grande Sertão: Veredas; diverti-me com a jornada delirante de Dom Quixote e Sancho Pança na obra de Cervantes; testemunhei o crime e o castigo de Raskolnikov; angustiei-me com os personagens sombrios de Kafka e viajei pelas fantásticas searas de García Márquez. Compartilhei, enfim, momentos maravilhosos com inúmeros personagens inesquecíveis.

Mas aconteceu-me de por muito tempo rejeitar o clássico Moby Dick. Talvez pelo primeiro contato com a obra ter acontecido quando menino, através de uma adaptação simplificada, dessas bem rasas. Desde então, carreguei a impressão de que se tratava apenas de uma aventura sobre baleias e marinheiros meio loucos.
O clássico Moby Dick na bela edição da Cosac Naif, com tradução de Irene Hirsch. Hoje, uma raridade.
Ledo engano. Somente agora, com maturidade literária suficiente, aceitei subir a bordo do Pequod e embarcar com a tripulação em uma jornada mística para compreender a grandiosidade de Moby Dick.

Se Moby Dick fosse apenas uma colossal epopeia sobre a obstinação de um homem em vencer seu oponente titânico, ou um inventário das peculiaridades de uma atividade econômica do século XIX, ou ainda uma narrativa sublime sobre a força inabalável da natureza frente à pequenez humana, já seria uma obra grandiosa. Mas Moby Dick vai além. Mergulha nas profundezas obscuras da alma e reflete, com rara complexidade, o fluxo caótico da própria existência.

É obra sublime, milagre da criação artística pelas veias da literatura. Exibe uma narrativa ritmada, profética, de qualidade estética quase sem paralelos na literatura universal, exemplificada nas descrições deslumbrantes que o autor faz do mar, da luta contra as baleias e dos excêntricos personagens que compõem a trama, como observamos em trechos como esse:
Um dia claro, um azul de aço. Os firmamentos do ar e do mar quase se confundiam nesse azul que tudo invadia; porém o ar pensativo, de uma transparência pura e suave, tinha olhar de mulher, ao passo que o mar robusto e viril se erguia em grandes ondas, fortes, prolongadas, como o peito de Sansão adormecido."
Publicado em 1851, quando o autor tinha apenas 32 anos, o romance é inspirado no naufrágio, em 1820, do navio baleeiro Essex, vitimado pelo ataque de uma cachalote gigante; e nas próprias memórias de Melville, que além de professor e vendedor de livros, também havia sido marinheiro na juventude.

Com um enredo aparentemente simples, Melville constrói uma obra de amplo apelo, capaz de encantar tanto os leitores que buscam as emoções de uma vertiginosa aventura, quanto seduzir aqueles que procuram em suas páginas compreender as nuances da psicologia humana.

O narrador - Ismael, é um sobrevivente que nos conta sua história.
"Chamai-me Ismael."
A famosa primeira frase do livro já prefigura o tom bíblico característico da obra. Em certo momento Ismael decide aventurar-se ao mar. Junto com o selvagem arpoador Queequeg embarca no Pequod, navio baleeiro comandado pelo obstinado capitão Ahab.

Apoiando-se sobre a macabra perna de marfim, o capitão conduz o navio. A perna original ficara perdida entre os dentes de uma imensa cachalote. Sem que sua tripulação saiba, a única caça que interessa a Ahab é Moby Dick, a lendária baleia branca que lhe subtraiu a perna. Toda sua existência se concentra nessa obsessão insana, mesmo que custe a sua vida e de seus amigos.

Ao longo dessa jornada o autor soube harmonizar arte, aventura, ciência, metafísica, filosofia, história e até teatro (um dos capítulos é uma peça teatral encenada pelos marinheiros) numa obra espantosamente coesa.

Além de elaborar um verdadeiro tratado sobre os cetáceos, descrevendo tudo o que se possa relacionar com o tema, desde a representação pictórica das baleias, fisiologia, hábitos e costumes. O modo de vida dos baleeiros, técnicas de caça, dissecação e extração do âmbar no intestino da cachalote, legislação baleeira... enfim, tudo!

Há até mesmo um capítulo dedicado a refletir sobre o simbolismo da cor branca e o motivo pelo qual essa cor é capaz de despertar um profundo terror — exatamente como ocorre com a cachalote Moby Dick.
Toda essa digressão pode, à primeira vista, parecer monótona e cansativa — e, de fato, alguns leitores mais ansiosos pela aventura e pelo desenrolar da trama podem optar por ignorá-la.

No entanto, esses capítulos figuram como curiosas inserções no livro, conferindo-lhe uma profundidade singular e enriquecendo o significado da obra.

Profundamente alegórico, o romance é permeado por simbolismos bíblicos, começando pela marcação do tempo: três anos de viagem, três botes de caça, três arpoadores, três dias de perseguição — uma alusão direta aos três dias de paixão, morte e ressurreição de Cristo.

Essa simbologia atinge seu ápice na cena final. Quando toda a tripulação perece, Ismael escapa ao agarrar-se a um salva-vidas em forma de ataúde — outro símbolo de morte e renascimento, ecoado na frase do livro de Jó que abre o epílogo:


"E somente eu sobrevivi para contar-te".
O sobrevivente é resgatado pelo veleiro "Raquel" cujo nome é uma alusão à personagem do livro de Jeremias. Raquel era aquela que não queria ser consolada, pois seus filhos já não mais viviam.

Assim como a personagem das escrituras, o capitão do veleiro também teve seus filhos perdidos e vagueia no mar a procurá-los.
"No dia seguinte um navio se aproximou e me recolheu, afinal. Era o Raquel, que voltando em busca de seus filhos perdidos, apenas encontrou outro orfão".
Nas Escrituras, Ismael é o filho de Abraão com uma escrava de sua esposa, Sara. Por esta ser estéril e já de idade avançada, oferece uma de suas escravas como concubina a fim de gerar um filho herdeiro ao esposo. Entretanto, Deus opera um milagre que faz Sara tornar-se fértil, ainda que muito velha, provocando o repúdio de Ismael por seu pai. Ele é obrigado a vagar pelo deserto, sem destino nem pátria, da mesma forma que o Ismael de Moby Dick se faz ao mar: ambos são uma espécie de pária, alguém sem lugar na sociedade. Tal destino não foi escolhido por eles, porém o aceitam sem revolta ou amargor. Isso permite a Ismael — o Ismael de Moby Dick — enfrentar qualquer situação que encontre no mar. Ele não tem contas a prestar com seu passado ou com sua vida em terra. Tem a visão ampla de quem está aberto à experiência da realidade. Não por acaso seu nome também significa "Deus ouvirá". É um sobrevivente, um náufrago por excelência, que está intimamente agarrado ao que de mais importante há na vida: a liberdade.

"O navio e o bote tomaram rumos diferentes; a brisa noturna, fria e úmida, soprou entre eles; uma gaivota estridente sobrevoou; os dois cascos balançaram; demos três vivas tristes e cegamente mergulhamos, como o destino,
no Atlântico deserto."
No segundo Livro dos Reis se encontra a história de Ahab, um "ímpio e enorme homem, que parecia um Deus". Sua esposa, a infame Jezebel, era uma princesa fenícia de beleza incomparável e grande influência sobre o rei, que, embora não fosse inteiramente mau, foi manipulado por ela para instituir um culto sangrento. Por causa disso, Deus retirou-lhe a proteção e, conforme a profecia de Elias, o sangue de Ahab foi lambido por cães após ele ser derrotado pelo exército de Damasco. Quanto a Jezebel, seu fim foi igualmente trágico: dilacerada por cães às portas da cidade.

Assim é o Capitão Ahab: um condenado cuja tragédia inexorável encarna uma maldade absurda e obstinada, capaz de sustentar uma vingança pessoal que arrasta inocentes para uma morte inútil. Em nome de sua obsessão, empreende uma cruzada quase religiosa contra o maior mamífero da Terra, apenas para ser derrotado de forma irônica e brutal, arrastado às profundezas do mar, preso ao cânhamo de seu próprio arpão.

O paralelo com o livro de Jonas — a metáfora do homem que passa três dias no ventre da baleia para, em seguida, ser devolvido à terra — é uma prefiguração clara da história de Cristo, simbolizando sua morte e ressurreição.

Outro fato notável no romance é a ausência de personagens femininos, que aparecem somente como alusão à mulheres ausentes: mães, filhas, esposas que ficaram em terra esperando por seus homens. E também no nome das embarcações que visitam o Pequod: o "Raquel" e "A Virgem".

Assim como a Bíblia, Moby Dick é um livro repleto de profecias, todas cumpridas à risca. Ao longo da história espalham-se os indícios da inevitável tragédia final. Os navios que vêm visitar o Pequod dão as pistas do que está por vir.

A ambigüidade com que discute o bem e o mal, a capacidade de se sobrepor à simples aventura e se converter em uma alegoria sobre o eterno embate de forças entre a natureza e a razão, a profundidade com que apresenta os conflitos e contradições humanas, fazem de Moby Dick, principalmente, um livro sobre a aventura heróica da vida.

E de Melville um escritor universal, um artista completo.
*Artigo originalmente publicado na Revista Destaque In nº 63 - maio de 2005. Revisado em outubro de 2024.