O ESTILO DE VIDA E O PENSAMENTO DE
FERNANDO BONATTI
PAZ, AMOR E SIMPLICIDADE
Alessandro Abdala*
Em 2006 éramos jovens idealistas. Naquele início de milênio, vivíamos ainda nos equilibrando com um pé no século que há pouco terminara e outro no novo e alvissareiro período que tantas (e tão rápidas) transformações haveria de promover em nossas vidas.

Hoje, (2024) mexendo em arquivos antigos, me deparei com um texto escrito naqueles anos transitoriais. Era uma entrevista com o amigo Fernando Bonatti, um autêntico filósofo que percorreu as ruas de Sacramento levando a sua franciscana mensagem de humildade, paz e compreensão.

Chapéu de abas largas, jaqueta de couro, indefectível barba branca, sempre calçando as sandálias da humildade, Fernandinho marcou uma geração.

Naqueles tempos, eu e o amigo Saulo Amui mantínhamos um portal na internet, o Sacrahome. Numa era em que o Google ainda engatinhava, Facebook e Youtube eram embriões e Instagram sequer existia, orgulhamo-nos em saber que cá na obscura Sacramento, fomos precursores das redes sociais e da produção e compartilhamento de conteúdo online.

Um dia convidamos o Fernando para um papo na praça e produzimos uma entrevista em vídeo, que foi a base para o texto que seria publicado na Revista Destaque In. Sem saber escrevíamos História, a do Fernando e a nossa própria.

Fernandinho, que tinha esquizofrenia e também sofria do coração, faleceu em 02 de outubro de 2010. Morreu dormindo, uma morte tranquila como ele sempre desejou e por vezes me confidenciou.

Foi filosofar no céu.

Hoje, deixo aqui essa homenagem e reverência ao amigo que tanto me ajudou a pensar os mistérios e desígnios da espantosa travessia da vida. Sei que de onde estiver, está olhando por nós.

Fernando Bonatti, brilhantemente retratado pelo artista José Pires de Lima.
Abaixo, o texto de 2006:
Fernandinho já é parte da memória cultural da cidade. Caminhando pelas ruas com seu passo calmo, seu jeito simples, sempre de bom humor compartilhando sua simplicidade e um bom papo. É um questionador nato, gosta de indagar acerca dos mistérios da vida e das contradições humanas. Amigo de todos, é exemplo de simplicidade e abnegação. Dono de vasto conhecimento nos campos da literatura e filosofia, Fernando é sobretudo um sonhador, um exemplo de que na vida o que importa são as coisas simples, e que sentimentos como a amizade e a humildade merecem ser cultivados. Fernandinho bateu um papo informal com Alessando Abdala, desta revista, e Saulo Amui do portal Sacrahome. O resultado publicamos nesta entrevista, procurando mostrar um pouco do seu pensamento e de sua história de vida. Produzimos também um vídeo exclusivo que você pode conferir na Internet, pelo portal Sacrahome.
Barba branca, jaqueta de couro e chapéu eram as marcas registradas de Fernando Bonatti.
A Juventude
Nasci numa família tradicional, família Bonatti Borges Afonso, tenho problemas psicológicos, de esquizofrenia, que são genéticos, hereditários. Essa doença manifestou-se aos 24 anos quando eu estudava na Faculdade de Engenharia em Uberaba. Em decorrência desses problemas eu abandonei a faculdade, fui morar na fazenda, vivi dezesseis anos no campo, estudando literatura, filosofia e religião. Vivia em meio aos livros e trabalhava um pouco, mas a maior parte do tempo eu ficava sozinho, tinha os empregados mas eu vivia sozinho. Gostava muito de estudar os mistérios da criação, de astronomia, de filosofia e principalmente das religiões.

O retorno à sociedade
Depois desse tempo na fazenda, aos 40 anos, eu vim pra sociedade e comecei a expor minhas ideias, meus conhecimentos. Muita gente não compreendeu porque tinham outros valores. Valores do mundo consumista, da sociedade capitalista, da necessidade de ter as coisas. Então eu fui mal compreendido, mas acabei fazendo muitas amizades boas, com gente mais nova, porque meus amigos de infância, todos eles acabaram se casando ou mudaram daqui. Aí eu fiz novos amigos, gente de mente mais aberta.
Mas minha vida foi meio difícil, e ainda é um pouco. Eu sou aposentado com um salário, minha família vive problemas econômicos. Temos o necessário, mas não dá pra viver tranqüilo não.

Nossa primeira foto juntos, altas filosofias ainda nos anos 1990.
A convivência com o ser humano
Eu gosto muito da companhia do ser humano, gosto muito, até mesmo dos velhinhos. Gosto do asilo, gosto da igreja católica, da reunião religiosa, do centro espírita, do colégio Allan kardec, onde a gente pode conversar, trocar idéias com pessoas mais jovens, que são mais abertas.

A convivência com os velhinhos no asilo também eu gosto muito, gosto de ver a aceitação, a fé que os mantém tranqüilos, sem desespero, sem lamurias, sem medo. Gosto das pessoas que são marginalizadas pela sociedade, das ideias delas, quando não são revoltadas, mas vivem pacificamente na sociedade. Tenho uma atenção especial pelas pessoas que tem problemas mentais, procuro compreendê-las, dar atenção.

Eu me trato no postinho da cidade com o Dr. Daniel, tomo remédio psiquiátrico e procuro carregar a cruz até o fim da vida, com sofrimento ou sem sofrimento. Sem sofrimento eu acho difícil, mas carregar a cruz com resignação e amor, ser simples, humilde, bom, e aceitar as pessoas que não são assim. Procurar compreendê-las porque todos nós estamos num caminho evolutivo.

A gente não pode julgar as pessoas nem condená-las. Toda pessoa, mesmo sendo uma criança, transmite conhecimento pra gente, de comportamento, de afeto. Meu mestre é Jesus Cristo. Eu acho difícil segui-lo mas acredito no que ele falou: "passará o céu e a terra mas minhas palavras não passarão".


"Procuro carregar a cruz até o fim da vida (...) ser simples, humilde, bom, e aceitar as pessoas que não são assim. Procurar compreendê-las, porque todos estamos num caminho evolutivo."
Na biblioteca pública, onde era frequentador assíduo, Fernandinho estudava seus autores preferidos.
As grandes mentes da humanidade
Eu admiro as grandes mentes já registradas na história da humanidade, principalmente Schopenhauer (filósofo alemão 1788-1860), porque ele mostra realmente a realidade da vida, mesmo pensando de uma forma pessimista a vida, a sociedade, Deus. Apesar de seu pessimismo Schopenhauer viveu até a velhice e morreu de morte natural, ele não tirou a própria vida, mesmo achando o mundo cruel e doloroso ele carregou até o fim as suas dores e a sua maneira pessimista de ver o mundo. Para quem via a vida como ele, a existência torna-se muito penosa, porque acabam as ilusões que nos fazem viver... Um dia as pessoas descobrem que a realidade da vida é uma mera ilusão, aí vem a frustração que é mais dolorida ainda.

Schopenhauer acreditava em Deus, embora ele afirmasse que Deus era mais mau do que bom. Mas ele acreditava que Deus era espiritual, autoconsciente. Falava também sobre uma ilusão que o mundo inteiro procura, o casamento. Para ele o casamento é um engodo da natureza, ele dizia que a mulher quando na época de procriar torna-se esbelta, bonita, para atrair o homem. Depois que ela tem os filhos, perde a beleza e o marido precisa batalhar para cuidar dos filhos e dela... é uma situação difícil se a pessoa não tiver uma estrutura, um meio de sobrevivência sem muito sacrifício. Então para Schopenhauer o casamento é mais dor do que prazer.


Com os amigos Gustavo e Saulo, no tradicional bate-papo pelas ruas de Sacramento.
Contrapondo esse pensamento temos a filosofia de Leibniz (filósofo e matemático alemão 1646-1716) que era muito inteligente também, ele foi o criador do cálculo infinitesimal, um cálculo muito difícil na matemática. Ele era uma grande mente, dizia que este é o melhor dos mundos possíveis. Aí Schopenhauer disse para ele visitar os leprosários, os hospitais, manicômios, para ver se realmente esse era o melhor dos mundos possíveis. Mas ainda assim Leibniz acreditava que mesmo com a dor, esse ainda é o melhor dos mundos possíveis.

Então a gente fica meio em cima do muro, porque olhando a natureza, as coisas simples da vida, os prazeres simples, o amor, a amizade, esse mundo não parece tão cruel como Schopenhauer diz. Na verdade existe realmente uma razão tanto para Leibniz quanto para Schopenhauer, a gente não pode é ser extremista.

Os dois falam de uma mesma realidade, vista por um de uma forma otimista e por outro de uma forma pessimista. Mas eu tenho a tendência natural de ser mais pessimista, quer dizer que dou mais razão para Schopenhauer do que para Leibniz , acho que por eu ter visto tanta loucura quanto eu já vi em sanatórios, tanto sofrimento, colegas meus que suicidaram, amigos que casaram e abandonaram mulher e filhos, e hoje são descrentes de viver uma vida em comum com a família, acham que é ruim, que a liberdade é melhor.

Casamento
Eu não posso falar do casamento porque eu nunca me casei, mas eu tiro proveito da experiência dos meus amigos, eles são um pouco frustrados com relação ao casamento, criação de filhos, convivência diária com uma mulher, as necessidades de um lar, o sacrifício que se tem que fazer até o final da vida em prol de uma família.

Por isso eu ainda acho que viver sem compromisso é melhor. Na minha maneira de viver, mesmo com as dores que eu passo eu me considero livre, porque eu não tenho responsabilidades, e tenho de onde tirar meus sustento, dado pela família.
Fernando Bonatti, 1952- 2010.
Abaixo, texto de Ana Lúcia Fidelis,
escrito por ocasião do falecimento de Fernandinho:

Meu querido amigo Fernandinho, as ruas da cidade jamais serão iguais sem o seu caminhar tranqüilo pelas calçadas que ficaram tão vazias sem o insubstituível som dos seus passos e da sua gaita.

É difícil conformar que não mais verei o sorriso sincero que você oferecia toda vez que nos encontrávamos.

Não mais pegarei na sua mão, sempre generosamente estendida ao me cumprimentar e não cantaremos mais as músicas que tanto gostávamos.

Não tocará mais os instrumentos que produzem o som vindo do seu coração bom e humilde que traduzia sua alma linda e pura.

Vai ser difícil tomar coca-cola sozinha na lanchonete da esquina sem ter você por perto me pedindo para declamar o poema de Cora Coralina:

"Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas."

O ponto de ônibus do correio nunca mais será o mesmo sem a sua companhia humilde e simples, sem as conversas que tínhamos quase todos os dias: as vezes sobre a minha vida, as vezes sobre a sua vida... conversávamos de tudo um pouco.

Não dividiremos mais as tardes juntos no escritório da revista, onde falávamos de política, religião, astronomia ou apenas tomávamos um café enquanto observávamos a paisagem da subida da Ritinha.

Nunca mais ouvirei as estórias suas com o meu avô que faleceu bem antes de eu nascer, mas que fiquei conhecendo através de você, que morou um tempo com ele e o conhecia tão bem.

Não o terei ao meu lado na passeata da luta antimanicomial em que eu, você e minha irmã Luciana, participávamos todos os anos .

Éramos "loucos" um pelo outro, pelas pessoas, por conhecimento e pela vida...
O desenho que me deu em troca do poema, guardarei pelo resto da vida, como havíamos combinado...

Você se foi sem se despedir e me devendo um abraço. Deixou-nos em uma manhã de sábado para não mais voltar.

Ficou um silêncio e um vazio causados por sua ausência que jamais será preenchida, pois você é insubstituível...

A chuva tranqüila que caía sobre a cidade representava as lágrimas de Sacramento, por ter perdido um filho tão querido e cidadão exemplar.

O céu ganhou mais uma estrela de luz intensa, cujo brilho é incomparável.
Aos amigos e familiares deixou saudades eternas e na memória de todos que o conheceram as lembranças de bons momentos que o tempo jamais apagará.

Você estará sempre em nossos corações...

*Ana Lúcia do Nascimento Fideles, outubro de 2010.
*Artigo originalmente publicado na Revista Destaque In n. 73, jan 2007.