Cheguei cedo no mato, sozinho. Em tempo de pandemia não se pode mais andar com amigos. O sol nem tinha nascido e do riacho sinuoso subia uma névoa preguiçosa, desenhando figuras enigmáticas na contraluz. Postei-me ao pé da centenária ponte férrea. Recostado na enorme viga metálica ajeitei o equipamento me concentrando nos sons da floresta que começava a despertar: juriti-pupu, pula-pula-de-sobrancelha, pipira-da-taoca, ariramba, uma algazarra ao longe... papagaios-galegos? No alto do morro piou um jaó. Um leve cheiro agridoce emanava de um ingazeiro à beira d’água - florescência um pouco tardia para a época.
De repente, barulho no mato! Gravetos quebrando e o conhecido farfalhar de folhas secas estalando sob a pressão de passos. Do emaranhado de galhos e cipós entrelaçados que compunham o baixo estrato da mata, ele emergiu das sombras para a pequena trilha que cortava a floresta: Um javali solitário. Jovem, enlameado, dentuço e focinhudo, aproximou-se em passos vagarosos sem me perceber camuflado junto às pilastras da ponte.
Estivemos cara a cara, coisa de metro e meio quando ele me notou, retesando-se. Reparei-lhe uma chaga na testa, seria marca de bala? Afinal é espécie perseguida por caçadores e fazendeiros, um estranho em terra alheia, pária desterrado que aterroriza o imaginário popular. Por alguns segundos nos fitamos absortos, curiosos, com medo. Cúmplices solitários na condição de estranhos ensimesmados. A mata silenciou, quase se podia ouvir o bater dos nossos corações acelerados. Disparei a câmera. Três cliques, no display da máquina o último quadro apareceu vazio. Ele voltara às sombras. A trilha novamente deserta. Só o murmúrio da juriti, a névoa preguiçosa e o cheiro adocicado da flor de ingá.
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O javali (Sus scrofa) é originário da Europa, Ásia e norte da África. Introduzido no Brasil no final dos anos 1960, começou a aparecer na Canastra a partir de 2012. Cada vez mais frequente na região, causa sérios impactos ambientais. Foto de 24/08/2020. Sacramento, Serra da Canastra MG - Brasil.