CRÔNICA
EM BUSCA DO TABULEIRO
Memória, História e Povoamento no Sertão do Desemboque
Alessandro Abdala e Carlos Alberto Cerchi*
Vicente Hermógenes, autêntico personagem do sertão do Desemboque, com igreja de Nossa Senhora do Desterro ao fundo. Foto de Alessandro Abdala em 2006.
Partimos de Sacramento num fusca recém reformado, capaz de vencer os desafios das estradas de terra maltratadas pelas chuvas abundantes, típicas do início do ano na Serra da Canastra.

Éramos quatro: Vicente Hermógenes, antigo morador do Desemboque; seu sobrinho Eurípedes, que sabe dirimir a estrada que leva à fazenda Alvarenga – nosso destino – distinguindo-a dos inúmeros caminhos que facilmente confundem o motorista vindo de fora; Alessandro Abdala e Carlos Alberto Cerchi, editores da Revista Destaque IN.
Alessandro e Berto, os editores com o amigo e inspirador, Professor Vicente. Foto de Saulo Amui.
A chuva intermitente que caíra nos primeiros dias do ano dera trégua na sexta-feira, véspera do dia de São Sebastião, em 19 de janeiro de 2006.

O objetivo da viagem era era encontrar o "Tabuleiro", lugar situado nos campos abertos e selvagens ao longo das margens do Rio das Velhas, cerca de 20 km para diante do arraial do Desemboque, hoje distrito de Sacramento MG.

Desemboque representa a gênese da ocupação do Triângulo Mineiro, de onde partiram bandeiras na devassa de serras, chapadões e vertentes, na geografia da mesopotâmia existente na parte ocidental da Serra da Canastra, entre os rios Grande e Paranaíba, confluentes do caudaloso Rio Paraná, que se forma após compor o “nariz” de Minas Gerais, no mapa político atual.
Chuva de janeiro no Chapadão do Zagaia. Foto de Alessandro Abdala.
Historiadores apontam que Desemboque, primitivo núcleo de população branca na região da Serra da Canastra, surgiu na segunda metade da era setecentista, no período conhecido como “ciclo do ouro”. Mineiros vindos de Tamanduá, hoje Itapecerica, encontraram o precioso metal nas margens do Rio das Abelhas, hoje chamado "das Velhas" ou Araguari - para diferenciá-lo do seu homônimo, afluente do Rio São Francisco, este que também nasce na Serra da Canastra, na vertente oposta.

As primeiras catas exploradas pelo entrante primitivo, invasor dos domínios dos ferozes caiapós e dos negros quilombolas fugidos das Gerais, foram abertas nos terrenos do Tabuleiro. As pistas para sua localização encontramos nos depoimentos de Seu Vicente e no livro “História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central” de Hildebrando de Araújo Pontes:
"Após algun dias de marcha, transposto o Rio São Francisco, depararam, adiante, um grande rio, em cuja margem esquerda, descobrindo ouro em abundância, se estabeleceram em um campo elevado que, por isso se chamou Tabuleiro. Aí se enregaram ao trabalho da mineração que já não oferecendo grande interesse, fora abandonado.”
Hidelbrando Pontes.
História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central -1978.
O Tabuleiro seria hoje o Desemboque, não fosse o ataque dos caiapós aos primeiros garimpeiros. O confronto do branco invasor com os índios resultou na retirada dos faiscadores para a região do atual Desemboque, onde o ouro de aluvião também aflorou em abundância.

Cerca de 260 anos após esse fato, estávamos em busca do misterioso local, ainda mais antigo que o velho Desemboque, núcleo originário irradiador da povoação do antigo Sertão da Farinha Podre, região de grande importância política e econômica para Minas Gerais e a região Sudeste.
Local do antigo Tabuleiro, povoado precursor do Desemboque. Foto de Alessandro Abdala em 2006.
Retornar a esse passado é também revisitar as contradições históricas e as incertezas de uma memória ancestral, preservada nos últimos remanescentes capazes de enriquecer a história com vestígios concretos. Esses indícios conferem significado ao processo de ocupação desta região do Brasil Central, moldado por homens de diversas etnias e pelo legado de bravura, conflitos, heróis e vilões, opressores e oprimidos – tudo documentado sob a ótica e o arbítrio dos historiadores.
Mapa ilustrativo, sem escala, indicando a localização do Tabuleiro. Desenho de Alessandro Abdala.
Buscamos registrar as memórias de Vicente Hermógenes, de 86 anos, guardião da tradição oral, reforçada pela leitura do livro de H. Pontes que possibilita a identificação do Tabuleiro mais de dois séculos depois. Ou, ao menos, fornece subsídios valiosos para estudos mais aprofundados para recuperar a memória regional e confirmar o caminho percorrido pelos primeiros entrantes do Triângulo Mineiro.
Professor Vicente Hermógenes, guardião da tradição oral do Desemboque. Foto de Alessandro Abdala em 2006.
Encontramos evidências do antigo povoado 18 km rio acima do distrito de Desemboque, em um local que coincide com as descrições históricas: uma vasta planície na margem esquerda do rio das Velhas, em formato semelhante a um tabuleiro, contrastando com as serras e depressões da região.

Outros indícios reveladores incluem a presença de um pequeno riacho chamado “córrego do Tabuleiro” – conforme depoimento de Vicente Hermógenes; e os vestígios das antigas catas de garimpo, evidenciados pelos montes de pedra lavada, restos da mineração artesanal que mostram a intensa atividade humana ali ocorrida em tempos passados.
Eurípedes e Alessandro sobre o cascalho lavado no período do “Ciclo do Ouro”.
Dezenas de grupiaras indicam a presença do garimpeiro no passado. Foto de Berto Cerchi em 2006.
Uma capoeira abriga barrancas escavadas e abandonadas, sinais da busca incerta pelo ouro de baixa qualidade no cascalho compacto, que um dia alimentou os sonhos de riqueza dos pioneiros que se estabeleceram nas margens de córregos e rios desemboquenses.

O lugar encontra-se na Fazenda Alvarenga, uma das propriedades originárias do latifúndio Bonsucesso, derivado da Fazenda Nova Suécia, de propriedade do Cônego Hermógenes Casimiro de Araújo Bruonswick, inventariada em 1862.

Atualmente (2006), a área é ocupada por pastagens para criação de gado, cujos proprietários residem em Uberaba.

Do outro lado do Rio das Velhas, município de Tapira, encontra-se a “Mata Grande”, onde ainda existem vestígios arqueológicos de ocupação indígena.
Professor Berto mostra o cascalho amarelecido, retirado das grupiaras ainda
presentes nas barrancas do "Córrego do Tabuleiro". Foto de Alessandro Abdala em 2006.
Enfim, havíamos cumprido a proposta de verificar o local primitivo, com referências plausíveis do Tabuleiro.

No Desemboque mergulhamos no “poço do Biba”, no Córrego das Pedras, divisa natural da Fazenda Nova Suécia, latifúndio no qual se encontra a Fazenda Alvarenga e dezenas de outras propriedades, chegando até o ribeirão da Parida, divisa do Parque Nacional da Serra da Canastra.

Desemboque agoniza vítima do abandono e do ostracismo. Uma faixa de pano na fachada de uma casa coberta por telhas de amianto, exibe a campanha eleitoral do prefeito recém eleito, também responsável pelo estado do lugar.

Outra faixa, pendurada no casarão colonial, denuncia o processo de aculturação incentivado pela administração pública.
Professor Berto (1950-2023) do alto da colina contempla uma de suas maiores paixões: o povoado de Desemboque.
Foto de Alessandro Abdala em 2006.
No minguado contingente de pessoas que hoje moram em Desemboque, não há vestígios do opulento Julgado Goiano, que até 1816, abrigou diversas etnias.

Contudo, existe uma atmosfera de preservação na natureza: rios de água extremamente limpas, pássaros livres, de cantos inexistentes no nosso mundo de cidades barulhentas onde o individualismo prospera.

O dia está terminando, percorremos o caminho de volta rumo ao poente.

No retorno a Sacramento, permanecem as indagações desafiadoras que nos levam a um olhar crítico e reflexivo.

Estrada de cascalho e areia, terreno de frágil consistência. Nas cercanias, acentuadas erosões. Voçorocas profundas causadas pelo uso equivocado da terra.

Além, as florestas contínuas de pinus e eucaliptos tomam o lugar dos cerrados originais ao longo da estrada que corta os Chapadões do Zagaia e do Bugre – nomes que resistem, embora os chapadões tenham desaparecido.

Casas abandonadas atestam o êxodo rural e mantêm vivas as crenças em assombrações, ilustradas pelas histórias dramatizadas por "Seu Vicente."
A visão do poente a partir do povoado de Desemboque. Foto de Alessandro Abdala.
Após cruzar a ponte sobre o ribeirão Rifaina, o padrão das terras muda e revela a fertilidade do solo de basalto decomposto. Lavouras e pastagens mostram por que a agricultura substituiu a exploração do ouro, motivando a migração das famílias para oeste do Desemboque, que povoaram as cidades de Sacramento, Uberaba, Uberlândia e outras da vasta região triangulina.

Ao longe, a claridade de Sacramento nos lembra da modernidade e sua maior e mais romântica invenção: a luz.

Este ensaio não tem pretensões acadêmicas ou de rigor histórico, embora possa servir como guia para quem deseje aprofundar-se no tema. Ele atende, oportunamente, à demanda por autoidentificação cultural e pela busca de nossas origens como um fator essencial de cidadania

Essa busca remete à dor existencial provocada pela angústia das contradições internas que marcam a trajetória humana.

Os sentimentos universais despertados pela busca por identidade revelam a necessidade de escapar do isolamento e construir o conhecimento essencial para responder a perguntas primordiais: de onde viemos e por que estamos aqui?

As contradições persistem, e repeti-las é uma forma de manter viva a busca por respostas.

A literatura oferece aos mortais a oportunidade de “ouvir vozes falando de tudo, de todas as formas possíveis.”

Precisamos desse espaço — ousamos considerá-lo sagrado e absolutamente necessário.
*Crônica originalmente publicada na Revista Destaque In, n. 72. Novembro de 2006. Revisada em 2024.