DESEMBOQUE
Do ouro ao vazio: ascensão e queda de um povoado
Alessandro Abdala*
Igreja de Nossa Senhora do Desterro, circundada pelo antigo cemitério.

"Impulsionado pelo fascínio do ouro, pelos aventureiros que chegavam, pelos garimpos promissores, Desemboque cresceu rapidamente. Suas ruas logo se enchiam de casas, o comércio firmava-se, um torvelinho de gente de toda espécie arribava vertiginosamente no arraial, atraídos pela faina da riqueza fácil e pelo fascínio de conquistar uma terra ainda selvagem e inexplorada."

O viajante que se dispuser a percorrer as estradas poeirentas, varando o Chapadão do Bugre, já quase nas encostas da Serra da Canastra, cravadas em uma colina à margem esquerda de um rio de águas verdes e correntosas, encontrará duas vetustas e solitárias igrejas, guardando a paz de um sertão ainda despovoado.

É o arraial de Desemboque, hoje distrito de Sacramento MG, um dos primeiros marcos da ocupação do Brasil Central e testemunho vivo da história do oeste mineiro.

Em Desemboque respiramos história, ela está viva em cada uma das pedras limosas empilhadas nos muros antigos ou espalhadas pelo terreno árido entre os chapadões do Bugre e do Zagaia. Podemos senti-la nas grupiaras adormecidas ao longo do leito do rio de águas corredias, nas ferragens carcomidas que emolduram as lápides de pedra do velho cemitério, na altivez inabalável das igrejas tricentenárias e nos olhares transcendentais de seus minguados moradores, que trazem no semblante e no sangue a insígnia dos tempos passados. Há uma atmosfera nostálgica que parece nos dizer: "Eis aqui a história de um povo, escrita com sangue e lágrimas, medida a peso de ouro, às custas de suor, crimes, aventuras e sonhos."

Palco de lutas sangrentas entre os bravos índios caiapós, negros quilombolas e garimpeiros portugueses faiscadores de riquezas, Desemboque surgiu das ruínas do extinto Tabuleiro, povoado fundado nas eras de 1700, nas encostas da Serra da Canastra, pelo guarda-mor Feliciano Cardoso de Camargo. Numa época em que abundavam os quilombos, encontrava-se naquelas imediações, perto de Araxá, às margens do rio Quebra-Anzol, o Tengo-Tengo, um dos maiores quilombos do país, aglomerando centenas de escravos fugidios e sedentos por liberdade. Liderado pelo negro Ambrósio, o Tengo-Tengo resistiu por muitos anos, até que vieram os sinistros “matadores-de-negros” comandados pelo sanguinário Bartolomeu Bueno do Prado, que ostentava o troféu monstruoso formado por uma fieira de quase 4.000 orelhas humanas.
Local do antigo Tabuleiro, povoado precursor do Desemboque. Foto do autor em 2006.
Atacado pelos índios Caiapós que habitavam as margens do Rio Grande —lançando flechas e ateando fogo —, o povoado do Tabuleiro foi dizimado, restando vivos apenas alguns poucos habitantes, que desceram cerca de três léguas rio abaixo para fundar o Arraial de Nossa Senhora do Desterro das Cabeceiras do Rio das Abelhas, que logo se tornaria vila, sede de julgado, centro político de grande importância para a colonização de toda a mesopotâmia compreendida entres os rios Grande e Araguari, onde hoje se situa o Triângulo Mineiro.

Impulsionado pelo fascínio do ouro, pelos aventureiros que chegavam, pelos garimpos promissores, Desemboque cresceu rapidamente. Suas ruas logo se enchiam de casas, o comércio firmava-se, um torvelinho de gente de toda espécie arribava vertiginosamente no arraial, atraídos pela faina da riqueza fácil e pelo fascínio de conquistar uma terra ainda selvagem e inexplorada. Alvo de disputas políticas, Desemboque pertenceu sucessivamente a Minas Gerais, São Paulo e Goiás, para somente em 1816 voltar a ser anexado definitivamente ao território mineiro.
Igreja de Nossa Senhora do Rosário, dos Pretos. 2024.
Oficialmente criado em 02 de março de 1763, o Julgado do Desemboque (área administrativa com juiz e burocracia local) compreendia todo o Sertão da Farinha Podre, que hoje corresponde ao Triângulo Mineiro e sul de Goiás. Essa vasta região era administrada pela sede em Desemboque, onde era grande o movimento. De acordo com documentos históricos, em 1783 contava cerca de seiscentos habitantes; em 1842 seriam 1.300 espalhados por quase cem casas em um arraial que abrigava comerciantes, artesãos, boticários, ferreiros, carpinteiros, tabeliães, oficiais — enfim, toda uma sociedade ampla e estruturada vivendo primeiro em função do ouro, mas que já exibia as demandas internas típicas do crescimento populacional e de um certo grau de desenvolvimento.

Segundo o historiador Antonio Borges Sampaio, de 1743 a 1781, mais de 100 arrobas de ouro foram extraídas das minas do Desemboque. Impossível saber quanto mais seria proveniente do roubo e contrabando. No entanto, a partir de 1871 o ouro começou a escassear, e Desemboque foi perdendo seu atrativo, obrigando sua população a procurar novas riquezas, lançando suas sementes nas terras férteis d’oeste. O povo desertava, organizavam-se bandeiras que partiam do Desemboque rumo aos ermos desconhecidos do Sertão da Farinha Podre.
Desemboque nos anos 1930. Quase nada mudou.
Buscando ouro encontravam rios, campos, terras férteis banhadas por águas puras e cristalinas, matas virgens de madeiras exuberantes, lagos piscosos como nunca antes puderam ver… muitos ficavam por estes caminhos, fundando pequenos povoados que viriam a originar cidades como Sacramento e Uberaba. Por todos os sertões acima e abaixo do Rio Grande, espalharam-se os aventureiros, tendo como ponto de referência e apoio o arraial do Desemboque. Povoaram aqueles ermos e mais do que isso, gravaram no caráter dos moradores os traços do costume, das tradições e da cultura mineira.

A beleza da paisagem e o clima de isolamento profundo que se respira em Desemboque, lugar onde a paisagem e a solidão são tão valiosas quanto a própria terra, descritos em uma crônica magistral de Mauro Santayanna:


ALQUEIRES DE BELEZA


"Os amigos, sábios e bem realizados fazendeiros de Uberaba, exigiram-lhe prudência:

-Cuidado ao comprar terras. Terra ruim não tem conserto. Além de não ganhar, você vai perder dinheiro.

E Ronaldo Cunha Campos, filho e neto de fazendeiros, família desbravadora de sertões, saiu à procura de terras. Afinal, advogado de grande prestígio, homem de inquieta e sólida cultura, sentiu, com os quarenta, a necessidade do retorno à terra. Havia referência geográfica que o chamava: as encostas da Serra da Canastra, onde seus avós se fixaram, na dura opção do desbravamento. Todos tentaram demovê-lo:

-Alí só dá capim barba-de-bode.

Glebas melhores lhe foram oferecidas. Massapê do bom, a preço razoável. Ronaldo ia, cavalgava furnas e fundos, cheirava a terra, para fazer-de-conta que entendia:

- É, não é ruim.

Mas, no domingo seguinte, voltava ao arraial do Desemboque, olhava as lápides do cemitério com nomes familiares, bebia a água dos regos abertos pelos bandeirantes:

-Não há fazenda para vender por aqui?

Os sábios matutos diziam que não, valorizavam o solo:

-Terrinha boa, doutor, ninguém quer vender não. Aqui não dá berne, nem desarranjo nas crianças.

Os meses passavam, as áreas boas inchavam em preço, os conselhos eram veementes:

-Compra a Fazenda da Baixada, Ronaldo. Pertinho, terra preta.

Ronaldo assentia, combinava encontro com os vendedores. Ao examinar os títulos de propriedade, objetava:

-Essa escritura não me parece boa.

Bom advogado, encontrava ilícitos onde tudo indicava lisura.

-É, não gostei dessa referência aqui. Pode dar complicações no futuro.

Até que encontrou fazenda para comprar no Desemboque. A mil e cem metros de altitude, com o vale do rio à frente e, além, o aberto Chapadão do Bugre.

E quando lhe disseram que a terra nada valia, perguntou:

-E quanto vale o alqueire de paisagem?”

E assim foi se despovoando o Desemboque. Os garimpos, exauridos, já não alimentavam a ambição dos aventureiros, que na alucinação das catas, na demência das procuras, na esperança do enriquecimento fácil, não se afeiçoavam à terra, lá se iam para outros sertões, novas paragens, desbravar outros lugares.

E o Desemboque foi morrendo, agonizando pouco a pouco, quase imperceptivelmente, de modo que num dia cinzento de um outono qualquer alguém percebeu que não havia mais nada. Não mais o brilho áureo do cobiçado metal, nem a turba aventureira dos primeiros tempos, nem a efervescência irrequieta dos forasteiros, não mais o cartório, nem a cadeia, a farmácia, os sacerdotes, as meretrizes, nem mesmo a rua da Várzea, ladeada pelos casarões centenários, outrora tão movimentada, existia mais.

Facilmente o Desemboque passaria por um sonho, uma estória antiga, mal contada, dessas que ninguém acredita, não fosse a presença concreta das duas igrejas com sua brancura amarelecida pelo inexorável passar dos anos, remanescentes inabaláveis, solitárias no alto da colina a comprovar o passado fantástico.

Hoje Desemboque é apenas um espectro daquilo que fora no passado. Reduziu-se a duas igrejas, pouco mais de dez casas, algumas sem nenhum habitante, dispersas ao longo de uma colina. Vez ou outra aparece algum visitante, com a curiosidade própria dos que reviram a história, resignado a desvendar as pistas do passado fantástico. Olha admirado a quietude infinita, respira embevecido o ar impregnado de causos passados, pega a pensar n’algum pensamento antigo e percorre os caminhos como quem estivesse regredindo ao princípio dos tempos…

Depois, comunga solenemente com o passado épico e vai-se embora com o desconforto da alma “mal-entendendo” e com a sensação de ter transcendido ao terreno do intangível, onde a história, palpável, ainda ecoa nas pedras e ruínas de um lugar perdido nos labirintos do tempo.