ENTRE A ELITE E A MARGEM
CLARICE LISPECTOR E CAROLINA MARIA DE JESUS
Duas escritoras, dois Brasis, um legado.
Alessandro Abdala*

*Nota do Autor: Escrevi esse texto há 17 anos, como singela contribuição à memória de Carolina Maria de Jesus, numa época em que começava a se reconhecer o valor da escritora sacramentana. De lá para cá, Carolina só fez crescer e é hoje indiscutivelmente uma das escritoras brasileiras mais celebradas de todos os tempos. Em Sacramento, sua terra natal, ("pão sem fermento" nos dizeres da escritora) embora alguns avanços tenham ocorrido, como a nomeação de uma escola em sua homenagem, Carolina permanece, assim como no passado, desconhecida, preterida, usada por oportunistas. Se caminhasse pelas ruas da cidade, certamente seria alijada por alguns dos que agora exaltam seu nome. Mas, Carol é resistente, é geniosa, inquebrantável. O tempo lhe fará justiça.

Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus no lançamento do livro Quarto de Despejo, 1961.
Foto do acervo de Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice Lispector, colorizada por @reinaldoelias.

"Em matéria para a revista Manchete, Paulo Mendes Campos escreve sobre “A autora mais cara do ano”, Clarice Lispector, após ter publicado seu livro “A maçã no escuro” em 1961, endossando sua posição de prestígio no cenário da literatura brasileira. Mendes Campos termina a matéria narrando um “esplêndido diálogo” entre Clarice e Carolina Maria de Jesus, escritora de sucesso espantoso por seu diário publicado, “Quarto de despejo”.
— Tive olhando o seu livro: como você escreve elegante!
— E como você escreve verdadeiro, Carolina!"

"Minha liberdade é escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo".

Clarice Lispector


Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. E as feridas são incicatrizáveis”

Carolina Maria de Jesus

Em 2007 completam-se trinta anos desde a morte de dois dos mais expressivos nomes femininos da literatura brasileira, Clarice Lispector (1920-1977) e Carolina Maria de Jesus (1914-1977).

Cada uma a seu modo, tornou-se voz contra as incoerências da sociedade brasileira e ambas contribuíram com seus escritos para a reflexão do papel da mulher ao longo do século XX.

Apesar de compartilharem a escrita como meio de expressão, suas trajetórias foram opostas.

Clarice Lispector, nascida na Ucrânia, veio para o Brasil ainda bebê, estudou nas melhores escolas, casou-se com diplomata e viajou o mundo. Construiu sua carreira nas esferas literárias mais prestigiadas, com uma prosa rica, complexa e inovadora.

Carolina Maria de Jesus, nascida em Sacramento, Minas Gerais, neta de escravos e com pouca instrução formal, trilhou um caminho difícil, escrevendo sobre a dura realidade das favelas brasileiras, em folhas de papel encontradas no lixo.

O reconhecimento de Carolina ocorreu quase por acaso, em 1958, quando o jornalista Audálio Dantas encontrou seus escritos na favela do Canindé, em São Paulo. Publicado em 1960, “Quarto de Despejo” se tornou um marco, vendendo rapidamente e sendo traduzido em dezenas de idiomas, com impacto internacional. Sua narrativa simples e direta capturou as mazelas da pobreza, despertando atenção ao redor do mundo, ainda que sua obra fosse resistida pela elite intelectual brasileira.

Na noite de autógrafos, foram vendidos 600 exemplares, no fim do ano as vendas somavam 100 mil cópias. “Quarto de Despejo” seria republicado em mais de 40 países. Sua projeção foi vertiginosa, e conforme explica José Carlos Sebe Bom Meihy, “Jamais outro livro publicado no Brasil com testemunhos de mulheres alcançou níveis equiparáveis ao de Carolina”. Segundo Meihy “Quarto de Despejo”, até 1998, teria “Um milhão de cópias vendidas em todo mundo, sendo inclusive, o texto brasileiro mais publicado de todos os tempos”.

Clarice, por sua vez, construiu uma carreira consolidada e foi amplamente reconhecida pela profundidade psicológica de seus personagens e pelo caráter existencial de suas narrativas. Obras como "A Paixão Segundo G.H." e "A Hora da Estrela", trouxeram questões universais sobre a solidão e os dilemas femininos.

Pela densidade de sua narrativa, e o profundo perfil psicológico de seus personagens, é comparada ao escritor judeu Kafka e junto com Guimarães Rosa, constitui um capítulo especial na história da Literatura Brasileira.

Mesmo sendo associada à elite cultural, ela também desafiou o status quo, expondo o conservadorismo que limitava as mulheres brasileiras.

Carolina estudou até o segundo ano primário, as viagens que fez foi peregrinando pelo interior de Minas Gerais e São Paulo, em busca de emprego e melhores perspectivas de vida. Sua escrita é simples, no estilo mais básico e direto: o diário, por vezes contendo erros de gramática e ortografia, sem contudo, jamais perder a riqueza dos pensamentos bem elaborados.

Em ambas escritoras é latente o talento literário, a narrativa envolvente e a visão da escrita como algo predestinado, capaz de guiar suas próprias vidas. Essas duas mulheres se conectaram, no sentido mais profundo, pelo retrato do sofrimento humano, em especial da mulher.
"Manuel apareceu dizendo que queria casar-se comigo. Mas eu não queria porque já estou na maturidade. E depois, um homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E levanta para escrever. E que deita com o lápis e papel debaixo do travesseiro."
Carolina Maria de Jesus

*

"Nasci para escrever. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que chamo de viver e escrever."
Clarice Lispector
Após o sucesso, Carolina encontrou dificuldades para se adequar ao estilo de vida que lhe era esperado, somadas ao seu temperamento independente, contestador e original. Sentiu-se usada, expôs-se em excesso e acabou consumida e descartada. Aos olhos da elite brasileira, tornou-se uma figura incômoda por expor, sem disfarces, os preconceitos e injustiças sociais do país, sendo assim relegada ao segundo plano das letras nacionais. Como comenta Meihy, “Ser negra num mundo dominado por brancos, ser mulher num espaço regido por homens, não conseguir fixar-se como pessoa de posses num território em que administrar o dinheiro é mais difícil do que ganhá-lo; publicar livros num ambiente intelectual de modelo refinado, tudo isso reunido fez da experiência de Carolina um turbilhão”.

Carolina bradava em favor dos desvalidos, dos favelados, daqueles que não tiveram a oportunidade nem a “regalia” de sofrerem com problemas existenciais.

Como observou a professora Eva Paulino Bueno, Clarice e Carolina “viram e documentaram o sofrimento das pessoas, especialmente o sofrimento da mulher”, o que fez ecoar suas vozes muito além do Brasil, suscitando teses e estudos acadêmicos ao redor do mundo.

Enquanto Clarice Lispector consolidou-se como figura incontestável da literatura brasileira, Carolina Maria de Jesus ainda enfrenta desafios em seu reconhecimento pleno. O preconceito racial e social dificultou seu caminho e fez sua obra ser relegada ao segundo plano por décadas.

“Ao contrário de suas pares (Nélida Pinon, Clarice Lispector, Henriqueta Lisboa), que só cresceram, a carreria de Carolina obedeceu o caminho do declínio (..) O avesso dessa questão sugere a crueldade da elite nacional que, através da redefinição constante do chamado código culto, elide uma participante que, apesar de sua obra extensa e original, deixa de ser considerada”. (JCSBM)
Edição de "Diário de Bitita", da Editora Bertolucci, que tive a honra de publicar em 2007, junto com o eterno amigo, Berto Cerchi.
Contudo, nas últimas décadas, sua trajetória e escritos têm sido redescobertos, e ela começa a receber o espaço merecido.

Em 2005 o Governo do Estado de São Paulo inaugurou, junto ao “Museu Afro Brasil”, no Parque do Ibirapuera, uma biblioteca que leva o nome da escritora. Em 2003 o Diretor Jefferson De, produziu o curta-metragem “Carolina”, protagonizado pela atriz Zezé Mota e premiado como vencedor do Festival de Gramado daquele ano. Teses de Doutorado foram produzidas tendo como tema a vida e obra da escritora, especialmente a partir do ano 2000. “Quarto de Despejo” foi selecionado para os vestibulares da UFMG em 2000 e UNB em 2004.

Em 2007 a Editora Bertolucci, da terra natal da escritora, reeditou “Diário de Bitita”, obra originalmente publicada na França (1982) e no Brasil (1986) em edição da Nova Fronteira, há muito esgotada.

Mas embora essas ações sejam positivas, e contribuam para consolidar a vertente de retomada do nome da escritora, é evidente que ainda há que se percorrer um longo caminho até que Carolina Maria de Jesus seja devidamente respeitada e aceita pela sua singular importância, como uma das escritoras mais originais que o Brasil conheceu.
*Artigo originalmente publicado na Revista Destaque In, n. 74 - março de 2007. Revisado em 2024.