A clássica edição da Editora Sabiá, que conheci em 1992.
Em dezembro, Cem Anos de Solidão, obra prima de Gabriel Garcia Marquez estreia na Netflix. Bom momento para relembrar meu primeiro contato com esse clássico da literatura.
O ano era 1992 ou 1993, eu tinha 15 anos. Naquele tempo trabalhava durante o dia como office boy em um escritório e frequentava o curso noturno na Escola Técnica, onde alguns anos depois receberia o diploma de contador (!).
Já há algum tempo morava sozinho em uma tapera ironicamente localizada na rua mais portentosa da cidade, a "Rua dos Fazendeiros" onde até hoje se veem os palacetes em que vivem algumas das mais tradicionais e abastadas famílias da minha provinciana, embora muito querida, Sacramento.
Ali, naquele mundo de opulência e conservadorismo eu era literalmente um estranho no ninho, e não raro chocava as madames que passavam as tardes tomando chá e descansando nos alpendres, sem disfarçar o incômodo ao ver aquele garoto taciturno, de olhar melancólico, pobre e maltrapilho, circulando cotidianamente pelas redondezas.
Em uma era pré-internet, as notícias e resenhas literárias chegavam pelo jornal impresso, que eu lia religiosamente à hora do almoço na Barbearia do Marinho, ou à noite na biblioteca pública, onde costumava matar aula para frequentar.
Eu já havia lido praticamente todo o acervo da biblioteca (ao menos a parte que me interessava). Por isso, naquela noite, vasculhava as prateleiras na esperança de encontrar algum título que tivesse me escapado e valesse a leitura.
"Ele foi de casa em casa arrastando dois lingotes de metal e todos ficaram surpresos ao ver potes, panelas, tenazes e braseiros caírem de seus lugares e vigas rangerem devido ao desespero dos pregos e parafusos que tentavam sair." Arte de Kateryna Tolmachova.
Foi quando notei, ao fundo, umas caixas de papelão empilhadas sobre uma mesa escondida atrás das estantes. Eram livros novos, certamente adquiridos para compor o acervo e ainda não dispostos nas prateleiras. Comecei a examinar os volumes e a maioria eram clássicos que eu já conhecia, "Os Miseráveis", "Vinte Mil Léguas Submarinas", "A Letra Escarlate", etc. Até que uma capa esquisita me chamou a atenção: sob um fundo branco, havia o desenho de uma mão espalmada coberta de tatuagens, circundada por cartas de tarot representando "O Diabo" e "A Roda da Fortuna". Em letras garrafais, escritas em vermelho, li: "CEM ANOS DE SOLIDÃO".
Com as mãos trêmulas abri o volume e percorri as primeiras linhas:
"Muito tempo depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía haveria de se lembrar daquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo".
Foi um arrebatamento. Quanta coisa estava dita naquelas poucas linhas, e em que estilo peculiar... eu nunca tinha lido algo parecido.
Rebeca assiste ao fuzilamento do Coronel Arueliano Buendia, em arte de Luisa Rivera.
Ainda em pé, na penumbra difusa do fundo da biblioteca continuei a leitura:
"Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas às margens de um rio de águas diáfanas, que se precipitavam por um leito de pedras grandes e polidas, que lembravam ovos pré-históricos".
Senti um calafrio, uma espécie de febre começava a me consumir. Ouvi a bibliotecária raspar a garganta e olhei para o velho relógio pendurado na parede: 22h, a biblioteca ia fechar.
Aproximei-me do balcão e entreguei o livro à rabugenta atendente, que primeiro lançou um olhar à capa, e depois de me fitar por cima dos óculos, perguntou sarcasticamente: "Tem certeza de que vai ler isso?"
Fiz um meneio com a cabeça, rezando para que ela não implicasse e confiscasse o volume. Os segundos se arrastavam enquanto a megera conferia novamente a capa, o relógio e a minha expressão consternada. Por fim, estendeu-me o livro com desprezo: "Boa leitura".
José Arcádio volta de uma caçada, em arte de Kateryna Tolmachova.
Naquela noite não pude dormir. Tomado por um delírio febril retornei à tapera da rua Capitão Ferreira, onde em um quarto mal iluminado e habitado por duendes, decorado com desenhos à carvão pintados nas paredes e rodeado de pilhas de livros dispostas pelo chão, acompanhei madrugada adentro, o insólito destino dos habitantes de Macondo.
A cada página eu me emocionava não tanto pelas desventuras dos personagens, mas pela maneira extraordinariamente coesa e fluida como tudo era contado - até então, eu não sabia que se podia escrever daquele jeito.
Conforme o enredo se desenvolvia, eu descobria, assombrado, que a história de Macondo era também a história da minha família. Assim como os Buendía, os Santanna, frutos de intrincados casamentos consanguíneos, também se dividiam entre criativos, voluptuosos e empreendedores José Arcadios; e introspectivos, intuitivos e determinados Aurelianos. À semelhança de Úrsula, mulheres extraordinárias e anônimas proviam seus lares de força e sensatez, enquanto seus homens se perdiam em aventuras mirabolantes. Até a repetição de nomes ao longo das gerações se mantinha, com Franciscos, Joaquins e Marias Cândidas se alternando para compor o mosaico de figuras peculiares. Do mesmo modo que os personagens de Macondo, meus avos, pais e tios encaravam as situações mais absurdas com a mais serena naturalidade. Mas, acima de tudo, o que unia misticamente a família ficcional e a real, era o olhar desolado, perdido e resignado, tão característico nos Buendía e marca registrada de cada Santana que já caminhou por essa terra.
O meu quarto na casa da Rua Capitão Ferreira, 71, a "Rua dos Fazendeiros".
Aqui, junto com espíritos e duendes, fui feliz por uma década no século passado.
Ao entardecer do segundo dia eu tinha dado cabo das quase quatrocentas páginas do romance. Nunca mais fui o mesmo. Era agora um rapaz transformado pela avassaladora revelação de que assim como o destino dos dos Buendía, o meu parecida também inexoravelmente marcado pela insígnia da solidão.
Do mesmo modo que José Arcádio e Úrsula, os ancestrais da família Santana eram primos em primeiro grau. Esse parentesco proibido acabaria por contaminar toda a estirpe, conduzindo-os, pela força do destino, a um labirinto de pecados, amores proibidos e reprimidos, delírios, inconsequências e loucuras que terminariam inevitavelmente na maldição da solidão.
Tal qual em Macondo, na primeva Sacramento dos meus bisavós, tudo era possível, tudo era real: rudimentares bondes elétricos que rasgavam a selva carregando árabes astutos e italianos destemidos; voos panorâmicos a bordo de tapetes voadores; pestes que causavam insônia e esquecimento; chuvas que duravam quatro anos, onze meses e dois dias. Tudo era tão natural como consultar-se com médicos invisíveis, conviver com fantasmas e memórias ou levitar e ascender aos céus em meio a uma inquietante nuvem de borboletas amarelas. Aqui, como em Macondo, fantasia e realidade se misturavam, porque tudo era magia, tudo era mistério.
No centro do círculo de giz que seus ajudantes traçavam onde quer que ele parasse, e no qual somente ele podia entrar, o Coronel Arureliano Buendía decidiria com ordens breves e sem apelo, o destino do mundo. Arte de Kateryna Tolmachova.
Gabriel Garcia Márquez foi uma das vozes mais expressivas da América Latina e nada que se diga sobre a genialidade de sua prosa parece novo. A experiência de ler Cem Anos de Solidão é indescritível, impactante e transformadora. Trata-se de uma teia de acontecimentos simbólicos, familiares, sociais e políticos, entrelaçados entre a realidade e a fantasia, o tangível e o absurdo, o grotesco e o belo. A narrativa é poderosa, complexa, fluida e maestralmente construída, envolvendo o leitor de tal maneira que, assim como a personagem arrebatada pelas borboletas amarelas, nunca conseguirá esquecer a magia de Macondo.
Cem Anos de Solidão nos convida a refletir sobre a condição humana, revelando as profundezas do nosso desejo de compreender o mundo e a nós mesmos.
Agora, mais de trinta anos depois daquela noite delirante na biblioteca, vejo que o romance será adaptado para as telas. Espero que a magia e o encanto de Macondo ganhe vida sem perder a essência da história. Que essa obra sublime inspire e cative uma nova geração de espectadores, envolvendo-os com sua inesquecível narrativa sobre amor, solidão e destino, e sobretudo que nos lembre da fragilidade dos nossos sonhos e a inevitabilidade do destino, pois o preço da solidão é irrecuperável e as estirpes condenadas a cem anos de solidão, não terão uma segunda oportunidade sobre a Terra.
José Arcadio Buendía amarrado ao castanheiro. "Foram necessários dez homens para descê-lo, quatorze para amarrá-lo, vinte para arrastá-lo até o castanheiro do pátio, onde o deixaram amarrado ao tronco." Arte de Kateryna Tolmachova.
"- O que é que você esperava? - Úrsula suspirou - O tempo passa. É verdade, admitiu Aureliano, mas não tanto."