ALMA-DE-GATO
"Se gato tem alma,
Não sei não, senhor,
Mas o passarinho
Esse nome herdou.


De penas bem claras
Pousado no chão,
Não pia, nem canta
Qual assombração."
Aves do Sertão - István Major.



Quando menino, junto com meu irmão e primos, percorríamos os quintais e pomares das casas da roça sempre assombrados pelo vulto sorrateiro da alma-de-gato (Piaya cayana) esquivando-se fortuitamente por entre as folhagens. Impressionados pelas estórias que ouvíamos, conferíamos a esta ave uma existência quase sobrenatural. Impossível de se alvejar por pedra de estilingue ou de cair em arapuca, era uma presença fiel, mas pouco vista. Sempre habitando a parte mais escura da mata, de onde de tempos em tempos, emitia seu canto de origem onomatopeica: "Chin coã!"

É uma ave comum em todo Brasil, e em Sacramento pode ser vista até mesmo na área urbana, onde aparece nas casas que ainda tem quintais caçando lagartas por entre as folhagens.

Procurando entender a construção do mito em torno dessa ave, reuni alguns textos sobre esse passarinho de nome fantástico:



Alma de Gato
Luís da Câmara Cascudo- Geografia dos mitos brasileiros.

Na galeria dos pavores infantis o mais curioso espécimem é o Alma de Gato. Não foi possível ainda materializá-lo. Atua unicamente pelo prestígio do nome, pela força da invocação, pelo poder da lembrança. Nele tudo é indistinto. Não tem forma, nem cor, nem processo para apanhar, maltratar ou raptar as crianças. Não sabem as imaginativas infantis como o Alma de Gato tortura ou se aproveita de suas vítimas.

Possívelmente nessa indeterminação aluncinante reside a melhor explicação do assombro.

Na Península Ibérica, na África, no Brasil indígena, todos os seres fabulosos tinham atitude e posição definidas. Alguns mais do que outros, mas todos guardavam linhas gerais de contorno bastante para caracterização identificadora no meio da espantosa fauna. O Alma de Gato é complexo, proteiforme, múltiplo, infixo. É rumor, é pressão, é som, é aragem, é movimento, é clarão. É uma entidade invisível e presente.

O sonho, o pesadelo, todos tem suas réplicas materiais na literatura oral indígena, negra e ibérica. O Alma de Gato passeia pelas inteligências meninas com grandeza disforme, imprecisa e tremenda, de uma perpétua ameaça.

Há entretanto, na ornitofauna brasileira, um pássaro com o nome idêntico. Pereira da Costa, no Vocabulário Pernambucano descreve-o assim:

Alma de Gato - Espécie de ave trepadora (Piaga cayanna, Less), a que os índios chamavam de Atinguaçu. A gente supersticiosa tem por mau agouro o canto desta ave.

O Alma de Gato é o mesmo Chincoã, o mesmo Tinguaçu que na Argentina e Paraguai sendo enterrado dá nascimento a uma planta que concede a invisibilidade a quem ponha uma folha na boca. são essa aves núncios de desgraças, agourentas, espalhando terrores nalma dos indígenas. Deles herdamos instintiva repulsa, o incontido frêmito de medo inconsciente e secular.

O prestígio nebuloso do Alma de Gato, confundido aparentemente no felino, vem de remotas origens do Brasil selvagem, num pavor ancestral, obstinado e contínuo, de criança em criança, como um traço espiritual, indisfarçável e seguro.



Cuculus cayanus. Ilustração de Mathurin Jacques Brisson - 1760.
Alma de Gato
Ademar Vidal

Entre os mitos da rua Direita existe um outro que vive nos quintais das casas de residência. Geralmente os quintais dessa rua, são pequenos, com um mesmo tipo retangular, cercados de muros e mais ou menos enfeitados de fruteiras. Nesta área restrita habita a alma de gato.

Não tem hora para aparecer às crianças desobedientes. É uma sombra que passa numa esquina de parede; uma sombra que de repente se some atrás de uma porta ou de um móvel, ou que faz uma árvore do jardim balançar levemente; ou ainda um barulho que se ouve perto ou longe. Tudo serve. A alma de gato dispõe de uma agilidade rara. Durante o dia apenas se vê o impreciso. Ou, melhor: nada se vê, sente-se. A sensibilidade é que fica alerta e colhe os movimentos como se fora antena de rádio.

A luz do dia desencanta o mistério, tornando a vida mais real. Mas quando entra a noite, com todo o seu cortejo de bruxos, então é que a alma de gato começa a ser notada materialmente. Não se espantem: materialmente. Ela mostra toda a conformação física de um gato comum. Gato preto. Os olhos destilam luminosidades de fogo. A luz desses olhos é vermelha — e é de tanta intensidade que parece originária de archotes. O destino desse bicho não é arranhar, morder ou ocasionar males semelhantes. O seu destino tem formas mais suaves. Ele só se apresenta para despertar medo aos meninos. O seu vulto rápido na apresentação consegue obter o milagre de respeito só comparável a outros mitos de grande influência na imaginação infantil.

O prestígio da alma de gato toma conta de toda uma casa, principalmente o quintal, onde vive e reina com poderes imperiais. Com o dia o menino brinca solto e feliz no quintal de sua casa. A alma do gato anda por longe, nem se sente o menor sintoma. Porém, de súbito o vento balança fortemente o arvoredo e, se alguém disser alguma palavra sobre assombração, ou olhar cheio de curiosidade para um ponto qualquer, é o bastante — todos se lembram logo da alma de gato, enquanto uma onda de receio se avoluma e se ergue ameaçadora. Quando chega a noite, o fantasma fica senhor absoluto dos quintais. Nenhum menino tem coragem de ir lá fora sem ser acompanhado de gente grande. Não vai. Mesmo que a noite não seja escura, que a lua ilumine e dissipe as sombras, ainda assim o quintal se acha invadido do mistério da alma de gato, não sendo raro se notar um movimento, por mais sutil, que venha a confirmar a existência do mito. Às vezes é mesmo um gato que passa, ou um morcego que chia ou que põe abaixo um sapoti.

Os gatos da rua Direita são uns danados durante a noite. Fazem correrias medonhas. Afastam as telhas dos seus lugares. Brigam, só brigam por amor. Fazem uma gritaria infernal. E a raça cada vez mais se multiplica. A população de gatos anda quase em parelha com a população de gente. Esse barulho noturno é que mais infunde respeito e receio às crianças. Então, quando não podem dormir, e que a insônia lhes toma todas as preocupações, fazendo-as ficar de olho duro e enxuto, a rumorosa batalha dos gatos tem uma significação terrível. Raro é o menino que fica no seu berço ou que não reclama uma pessoa maior ao seu lado. A alma de gato toma posição e demonstra prestígio avassalador ao lado de outros duendes. A conseqüência desse temor traz certo descanso aos pais, principalmente às criadas, que são as que mais fazem ameaças e que, a todo momento, lembram os poderes extraordinários do mito animal.

O estranho nisso tudo é que nenhum malefício físico imaginário se pode esperar. Não é como outros fantasmas que acenam com a morte, que costumam carregar as crianças para longe, ameaçando, fazendo longas e maçantes viagens. A alma de gato é como se fora alma do outro mundo: só faz medo e mais nada; nem sequer se usa da velha frase: "Ele vem buscar você".


Alma-de-gato (Piaya cayana). Foto de Alessandro Abdala.
Alma-de-gato também é título da canção de Tavinho Moura:

Alma de Gato
Tavinho Moura e Murilo Antunes

Beira de fogo é bom
Lugar pra tudo contar
Estórias de amedrontar
Se repará bem no ingá
No tom do jacarandá
Os seres vivos que há

Trinca ferro, alma de gato
Saci da mata tempera a viola
Os seres vivos que há
O homem não tem razão
Da própria vida matar
Ei andar, andar, andei

Na trama da sapucaia
Macaco vai se enredar
O sapo vai coaxar
E a cobra sissibilar, ô

Na hora do rompe ferro
Previsto de assombração
O curumim adormece
O curupira esse não, ai
Andei, andei, andei, andá

Beira de fogo é bom
Lugar pra se acalentar
O sonho de se sonhar
O sonho de se sonhar

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