ACERTO DE CONTAS
Morte e vingança nos confins do sertão
Alessandro Abdala*
O Hermógenes Moura tinha fama de valentão. Gabava-se de ser dono de mais de vinte mortes, bem encomendadas e bem despachadas. Tinha a cara dura, a pele seca e escura e os dentes afiados, usava um bigode espesso, que emoldurava o nariz aquilino em contraste com os olhos cinzentos e ferinos. Descendia de uma família famosa em valentia, sendo neto do afamado e temido Tenente Coronel Joaquim Pereira de Moura, que nas eras de 1700, havia massacrado hordas de negros quilombolas fugitivos, e exterminado os últimos dos valentes caiapós.

Homem sem medo mas prevenido, não desgarrando minuto de sua winchester papoamarelo, apalpando amiúde o Shimidth h.o. bem preso ao coldre e ao alcance da mão ante o menor sinal de perigo.

Não era homem para brincadeiras, preferia o certo ao duvidoso, o dito pelo não dito. Criatura solitária, apesar de ter alguns parentes. Perdera o pai logo cedo, vítima de traição. Herdara posses, terras a perder de vista, dobras de sesmarias arrematadas pelo avô nos primórdios daquela povoação.

Era mau por natureza, não por necessidade. Corria fama até de que ao ficar órfão de pai, estivera vagando pelo velho cemitério, à hora má, em que a coruja não pia, e que ali entre velhos túmulos, debaixo do antigo pau-de-óleo, havia proposto pacto com o cão, que lhe fechasse o corpo e lhe desse sempre sobreaviso e proteção. Em troca deveria pagar com almas, a primeira sendo a da mãe, viúva fresca e inocente.

Não se pode separar aí o que é lenda e o que é verdade, o fato é que dias depois de enviuvar, a mãe do Hermógenes, que já apresentava um temperamento neurastênico devido aos freqüentes casamentos consangüíneos comuns entre os portugueses de que descendia, foi encontrada morta boiando no leito do Rio das Abelhas.

Quando indagado sobre o ocorrido, Hermógenes fazia como quem já havia se conformado e respondia que a mãe, seduzida pelo murmúrio das águas, atendera aos apelos da Iara, entregando-se de bom grado às correntezas traiçoeiras do rio.

Sozinho, Hermógenes tornou-se cada vez mais estranho, irritadiço e de coração mais duro. Por essas e outras, sua fama era grande, e não havia quem não o temesse, na sede e por todos os arredores do Arraial de Nossa Senhora do Desterro do Rio das Abelhas.

Acontece que Hermógenes começou a ter saudade de mulher. Já ia longe o tempo em que se divertia com as moças de má vida na rua-de-baixo. Agora queria mulher direita, de boa casta e boa índole, que lhe desse prole e lhe garantisse herdeiros. Precisava conservar o legado dos Moura, perpetuar a espécie de valentões.

Para noiva já tinha uma escolhida: Maria Luzia Vicência de Lacerda, mulher nova, bonita, e viúva. Viúva de um certo Etelvino Cadico, grande criador de gado nas margens do Rio Grande, dono de terras férteis no antigo povoado do Quenta-sol. Etelvino era cuidadoso com os calores da beira do Rio Grande, rio de águas mansas, quentes e volumosas, de lagoas marginais infestadas de traíras pré-históricas e repletas de maleita. Etelvino temia a maleita, durante os meses quentes, não se achegava à beira do rio, no decorrer desses meses, para cuidar do gado, dar sal, pajear os bezerros desgarrados, curar bicheiras, construiu uma choupana de pau-a-pique e folhas de buriti, bem no alto da colina das sete voltas, longe dos mosquitos que traziam no ventre a semente da morte. Nessa casinha improvisada passava dois, três dias por semana, dando providências no rebanho.

Acontece que o pobre Etelvino preocupou-se demasiado com a maleita e esqueceu-se do barbeiro. À noite, quando repousava, o corpo moído pela labuta diária servia de pasto aos hematófagos propagadores das chagas. E foi de um ano pra outro que Etelvino, que há tempos, porém sem desconfiar, trazia no coração as chagas fatais, adoeceu e morreu. Deixando viúva fresca a Maria Luzia, recém casada e já desamparada. Um prato cheio para o valentão Hermógenes Moura.

Viúva nova, bonita e trabalhadeira, Maria Luzia despertava o interesse de inúmeros pretendentes. Repelia-os sem cerimônia, não queria mais saber de homem, nem quis voltar para a sede da fazenda do pai. Vendeu o gado da beira do Rio Grande, reformou a Casa Grande da fazenda, que ficava a poucos quilômetros do arraial, reforçou a criadagem, e resignou-se a continuar levando a vida e pensando no marido Etelvino, à quem tinha prometido fidelidade, mesmo depois da morte.

Um dia a criada anunciou visita. Maria Luzia achegou-se à porta da sala, um homem a esperava. impressionou-a as sobrancelhas grossas e os olhos cinzentos. Aquele homem soturno, metido numa capa grossa, preta, mesmo naquele calor de março.

Era o Hermógenes Moura.

Achegou-se, os cavalos relincharam confusos no curral de tábuas, os cachorros se preveniram, porque cachorro e cavalo são bichos que enxergam o por trás das coisas e conhecem o interior das intenções da gente.

Hermógenes queria propor casamento, que Maria viesse com ele pro arraial, como mulher amasiada e ajustada, conformemente sua condição de viúva permitia. Mas Maria negaceou, não quis saber de conversa, despachou-o dali da porta do terreiro mesmo, fazendo o em-nome-do-pai enquanto se refugiava no quarto.

Hermógenes não era acostumado a aceitar rejeições, mas nesse caso, nada disse, nada fez, apenas virou-se sombriamente rumo ao caminho de volta, e tomou o trio batido que conduzia ao arraial pelas margens do rio.

Maria Luzia acompanhou-o com o olhar apreensivo através das frestas da janela. Na noite daquele dia o marido veio visitá-la no quarto, como fazia sempre, desde a sua morte. Apareceu-lhe desta vez em meio a fumaça ambarina que dançava por entre as frestas do teto vinda das brasas do fogão-à-lenha na cozinha, era mais um delírio que um espectro, mas Maria Luzia pôde senti-lo mais próximo do que nunca, e, embora ele não dissesse nem pedisse nada, ela soube entender o seu desejo e reforçou os juramentos de fidelidade eterna. Depois, rezou um terço para a Virgem Maria, e dormiu pensando em Hermógenes.

Passaram-se os meses, e dias sucediam dias, veio a seca trazendo os ventos desvairados e o frio desmesurado, depois as chuvas monótonas e intermináveis, e junto com elas uma torrente de vida. O Rio das Abelhas cumpria o ritual anual de subir além da conta, suas águas transbordaram as margens numa torrente furiosa, inundando terras e arrastando consigo o que encontravam pelo caminho, deixando como recompensa um rastro de fertilidade pelas margens renovadas.

Lírios multicoloridos recém abertos salpicavam os campos no chapadão. Destas flores Maria Luzia colheu as mais belas e delas fez uma coroa, que levaria no dia 02 de novembro ao túmulo do marido, que jazia no velho cemitério de pedras que circundava e guardava em seu seio a centenária Igreja de Nossa Senhora do Desterro, matriz daquele arraial perdido nos confins do sertão.

Aquele finados transcorreu como todos os outros. Choros, saudades, lamentos. Depois de prestar as homenagens ao marido, Maria Luzia tomou o caminho de volta pra casa. Era uma tarde quente, de início de novembro. No adro da igreja os fiéis embalavam um cântico murmuriante, de rezas antigas. Alguém badalou os sinos, em homenagem aos mortos. Maria Luzia desceu pela rua principal, passou em frente a venda, e de lá de dentro, por trás da penumbra, pôde adivinhar uns olhos cinzentos que a seguiam. Tomou a Rua da Vargem, circundou os velhos casarões de parede de adobe com a tinta descascada e sustentadas por firmes esteios de aroeira, tirou os sapatos para transpor o córrego-das-pedras e depois chegou ao rio, atravessou-o pela ponte velha e seguiu pela estradinha em forma de "S" subindo a colina branca, rumo à sua casa.

Após transpor o cume da colina, a trilha que a levaria para casa estendia-se por um trecho sinuoso, entrecortado por pequenos capões de mato virgem, com árvores altas, angicos antigos de tronco grosso e casca dura, tamboris nostálgicos e óleos sombrios estendiam suas copas às alturas, cobrindo o sol e conferindo um negrume quase noturno à parte mais baixa da pequena floresta.

Abrigado entre os troncos daquelas árvores sinistras, Hermógenes esperava sua vítima, à guisa de tocaia.

Hermógenes possuía mãos fortes, sustentadas por braços vigorosos. Maria Luzia tentava gritar mas não podia, os dedos nodosos estrangulavam-lhe o pescoço, tinha a roupa rasgada, as costas desnudas, os gravetos secos feriam-lhe a pele, entrando na carne. Hermógenes, descontrolado, fora de si, resfolegava sobre o corpo frágil de Maria, que já não sentia mais o ar entrar nos pulmões e via o último fio de vida escapar-lhe junto ao sangue que escorria de seu corpo mutilado por entre as folhas secas que descansavam naquele chão úmido, daquela pequena floresta negra e sombria que agora transformara-se em seu ataúde.

Desorientado, Hermógenes contemplou o corpo sem vida estendido no chão, não fôra sua intenção matá-la, mas o ódio alimentado em seu peito, o peso da rejeição, e a constante reluta de Maria Luzia em ceder às suas carícias, acabaram por cegá-lo. Agora estava feito, Maria Luzia jazia sem vida; pelas mãos de Hermógenes se contabilizara mais uma morte. O Diabo viria cobrar a conta.

Hermógenes tomou o trilho rumo ao arraial, arriaria o seu melhor cavalo, aprontaria os mantimentos e desertaria pros lados do Chapadão, teria uns meses de reclusão, até que as coisas esfriassem.

Mas o porvir é sempre imponderável, e outros fatos guardavam o destino do valentão Hermógenes.

No caminho, quase chegando ao rio, encontrou o Chico Simão. Chico era folheiro de profissão, tinha o pescoço curto, a cabeça quadrada e a boca larga, cheia de dentes. Viera ao mato cortar cabos de guatambu, que deixaria secar e depois usaria nas suas peças de folha de flandres; agora encontrava aquele Hermógenes, todo desalinhado, feio como o diabo em pessoa, com uns olhos medonhos, vermelhos, de dar medo em cobra cascavel.

- Que é que foi desgraçado? Perguntou o Chico com sua voz esgarçada.

- Estive domando mula braba, de mau caráter, me escoiceou e fugiu desembestada pela invernada. Respondeu Hermógenes, e não esperou mais perguntas, tomando o caminho e seguindo ligeiro rumo ao arraial.

Chico Simão ainda demorou-se por ali, avistara no barranco do rio uns guatambus novinhos, roliços, cabos amarelinhos, de uma beleza de dar gosto.

Colheu os cabos, removeu a casca verde, fazendo aparecer a madeira amarela e cheirosa, e juntando tudo em um feixe bem feito seguiu pro arraial. Quando chegou, a polícia já o esperava. Quatro homens o imobilizaram amarrando-lhe as mãos. Ao redor, uma turba desvairada bramava gritos de raiva exigindo punição ao assassino. Entre os olhares condenativos, Chico pôde distinguir os de Hermógenes, agora sem a vermelhidão ferina de antes, pelo contrário, exibiam um cinza desbotado, inexpressivo, de indisfarçada indiferença.

Astuto, Hermógenes ao chegar ao arraial fôra logo recompor sua figura, tomou um banho no córrego das pedras, trocou a roupa rasgada, e revestindo a cara de perfeita inocência foi dar na porta da cadeia. Lá relatou que já há alguns dias Chico Simão lhe confidenciara a intenção de tocaiar Maria Luzia, e que até o convidara para a empresa. Mas rejeitando a idéia, Hermógenes teria discutido com Chico, fazendo-lhe esquecer o assunto. Entretanto não deixara de ficar de olho no folheiro. Assim, vira-o rumar para o outro lado do rio logo após Maria ter tomado aquele caminho; não exitara em seguí-lo, porém chegara tarde, a tempo apenas de presenciar o desfecho da triste cena de assassinato. Vira sem ser visto, e voltara o mais depressa para avisar as autoridades.

Dessa forma era a palavra de um poderoso valentão, dono de dobras e dobras de terras valiosas, contra a de um simples folheiro. Chico, assustado, perturbado, surpreso, não sabia o que responder, embaralhava-se nas explicações, engasgava diante da turba que lhe acusava desumanamente. Hermógenes, pelo contrário, dava mostras de total segurança, exibia pormenores, apresentava motivos, explanava detalhes com uma serenidade de fazer arrepiar até o Diabo. Ademais, Chico era homem de alma fraca, e já nas primeiras horas de tortura confessou a autoria do crime. Assim Chico Simão terminou condenado a sete anos de prisão, que deveriam ser cumpridos na cadeia de Paracatu do Príncipe – onde havia um sistema de tratamento exclusivo para crimes daquela natureza - por ter assassinado friamente a viúva de Etelvino Cadico, Maria Luzia Vicência de Lacerda.

Quando adentrou os portões da prisão de Paracatu Chico Simão contava uns cinqüenta e tantos anos, já tinha portanto a idade avançada, que somada a vida de reclusão, à parca alimentação e ao desgosto de cumprir uma pena que não era sua de direito, resultou num definhamento acelerado de sua saúde e de sua condição física, tanto que na metade do segundo ano de clausura havia quem dissesse que não alcançaria o terceiro.

Hermógenes, pelo contrário, regalava-se em disposição, estatelava-se em força física e animação, tanto que resolveu ir para Goiás, ver umas terras antigas, do tempo de seu avô, que deveriam estar carecendo de providências, aproveitaria para respirar novos ares, provar novas mulheres, pois há muito enjoara-se das raparigas lânguidas da rua-de-baixo. Portanto, enquanto Chico Simão definhava entre as estreitas paredes de pedra da prisão, Hermógenes cortava os chapadões, cruzava veredas, vadeava rios, varejava os sertões e espalhava o terror de sua figura por terras nunca antes vistas por ele.

Chico Simão estava para morrer, a liberdade privada havia lhe exaurido as forças e o entusiasmo pela vida. Diante disso resolveu-se por lhe perdoar a pena, que morresse então em liberdade. Ademais, não fosse ainda o Governo ter prejuízo com missas e funerais.

Livre, Chico Simão só manifestou um desejo, voltar ao seu velho arraial, rever os parentes, aliviar a saudade e então morrer em paz. Foi-lhe devolvido o dinheiro que lhe pertencia, e que era toda a quantia que tinha ajuntado na vida, na ocasião em que foi preso, - noventa mil réis – uma trouxa com alguns pertences, entre eles uma estampa com a gravura de Nossa Senhora do Desterro gravada na frente, e o Salve-rainha escrito atrás, em latim, que Chico não sabia ler, mas gostava de admirar. Contratou um ajudante, comprou uma mula trochada, e pôs-se a caminho do Rio das Abelhas.

Ao passar pela praça central de Paracatu uma cena lhe chamou a atenção. Era um julgamento público. Amarrado ao pelourinho estava um negrinho, jovem, não mais que um moço, olhos e pele negros como a África, o dorso nú marcado por vergões rubros de sangue. Era açoitado por um português de bigodes longos e barba cerrada. Acusado de negligência, roubo ou furto, Chico não pôde entender bem o quê.

-Estará condenado este negro a ser açoitado até a morte em nome da justiça, a menos que algum cristão se proponha a comprar sua liberdade e pagar por sua redenção! Bradava o carrasco. Poucos dos transeuntes se interessavam pela cena, que já se tornara corriqueira naquelas paragens, o mais comum era a vítima ser executada, logo após cumpridas as perguntas de praxe, pois ninguém se interessava pela vida de um negro mal-criado.

Mas tomado por não se sabe quais sentimento de compaixão, Chico ergueu a mão, alteou a voz e exclamou:

- Eu compro a liberdade do negro!

Alguns olhares voltaram-se para ele, seguidos de gestos de desaprovação. Na verdade, esperava-se com um certo anseio pela execução. A contragosto o carrasco exclamou o valor da quantia:

- Cinqüenta mil reis!

- Está aqui! E Chico estendeu a mão entregando o dinheiro.

Mal entendendo o que acontecia, o mirrado negrinho caiu de joelhos aos pés de Chico, numa mistura de agradecimento e submissão.

-Senhor, muito obrigado, salvou minha vida! Agora o senhor é meu dono, pode dizer que eu cumpro todas as suas ordens, conforme o senhor designar, o que quiser em pagamento e que eu puder fazer, estou aqui para executar.

- Não meu rapaz! A sua liberdade te pertence, pode seguir o seu caminho, o que fiz é uma paga de dívida que tenho cá comigo, com você estou certo, siga a sua estrada e faça o seu roteiro!

- Mas eu não tenho pra onde ir, e aqui não me querem, eu lhe acompanho, se o senhor permitir....

- Bem, neste caso, estou rumando pra minha terra, o Arraial do Rio das Abelhas, dispenso o ajudante que contratei, e você vai comigo, de contrarregra, adjutorando na viajem conforme é necessário.

- Com muito gosto meu senhor, hei de acompanhar o senhor pelo resto da minha vida!

- Me diga uma coisa, rapaz? Qual é o seu nome?

- É Bida senhor. É assim que me chamam. Nego Bida.

- Pois então vamos Nego Bida, que já é tempo.

Mas viajar por aqueles sertões inóspitos, em lombo de mula, seguindo o rastro do tempo, é tarefa difícil, empreitada pra cabra duro, que tope frio e tope sol, que durma no chão espinhoso sem dizer amém e rasgue o duro do dia somente com uma água rala de café e um naco de carne seca com farinha na barriga. E o Chico não agüentou a viagem, chegando na barra do Paranaíba, viu que ia morrer, chamou o Nego Bida e disse:

-Vamos acampar aqui meu filho, que eu estou me acabando... Nego Bida fez um jirau de varas, onde deitou o velho folheiro.

-Não morre agora meu senhor, que eu não tenho tino de fazer nada sem o senhor!

- Escute uma coisa, meu filho. Quero que a minha sepultura seja o rio, que as águas do Paranaíba me levem, me levem para bem longe, lá para baixo, onde vou me encontrar com as águas do Rio das Abelhas que é o meu rio, de onde nasci, e então estarei sepultado com alguma coisa minha, que são as águas que passaram pelo meu arraial e que me contarão as histórias de lá, e me darão notícias de meus parentes e das minhas coisas.

Aquilo era um comecinho de noite, Nego Bida ascendeu uma vela, colocou ao lado do moribundo, junto ao catre, segurou as mãos do velho e começou a chorar. Chico Simão então lembrou-se de coisas antigas, do seu tempo de criança, de como tinha crescido no arraial, da igreja centenária caiada de branco, da devoção à nossa Senhora do Desterro, de como aprendera o ofício de folheiro, e de como se metera na cadeia, da cínica maldade de seu malfeitor, e de seus anseios em finalmente encontrar a paz para seu espírito. Contou toda sua história, abriu um sorriso largo, segurou com uma das mãos os dedos negros do menino Bida, na outra a estampa de Nossa Senhora do Desterro e morreu.

Em Goiás Hermógenes tornara-se mais arruaceiro, arranjara confusões, mexera com mulheres alheias, criara inimizades e fora jurado de morte. Chegara a hora de voltar, afinal, agora sentia saudades de sua terra, daqueles ares frescos, das belas águas cristalinas, da efervescência do arraial, da antiga casa da fazenda, e até mesmo as moças prestativas da rua-de-baixo já não lhe pareciam mais tão sem graça. Vendeu as terras que foram de seu avô, comprou um cavalo novo, alazão, e pôs-se a caminho de volta ao arraial, feliz da vida, com muitos contos de réis na algibeira. Quando chegasse, iria investir em gado, engordar suas fazendas, melhorar ainda mais de vida. A caminhada agora era longa, exigia paciência, era rasgar aqueles sertões, dentro de uma semana estaria em casa, se o tempo ajudasse.

Dias depois passava por um pequeno amontoado de casas que começavam a despontar às margens de um ribeirão de águas verdes a que chamavam Borá, viu que haviam erguido ali uma pequena capela de galhos de pindaíba, talvez para atender os garimpeiros faiscadores de diamantes. Tentou divulgar o santo, pareceu-lhe Nossa Senhora do Santíssimo Sacramento, mas não fez questão de averiguar, não ligava para igrejas e santos, porém não deixou de se espantar com o quanto havia aumentado a movimentação naquela localidade. Era a boca da noite, e Hermógenes decidiu pernoitar ali, descansar da viagem, no outro dia, bem cedo retomaria o caminho, agora era só atravessar o Chapadão do Bugre, em um ou dois dias estaria em casa. Encaminhou-se para a venda, ao chegar à porta um grupo de garimpeiros preparava-se para seguir viagem.

- Pra onde é que vão os companheiros?

- Ohhh! Mano! Vamo é pro Arraial das Abelhas. Mode vendê uns garimpo que colhemo.

- Pois então mandem notícias à minha gente. Digam que o Hermógenes Moura está de volta. Por um ou dois dias estarei raiando por lá!

- Oh! Mais o senhor é o valentão Hermógenes! já ouvimu falá! Sabemos que é cabra macho em valentia! O recado será dado!

No outro dia cedo Hermógenes pôs-se a caminho, galopava com vontade o alazão, com a saudade aflorando ante a chegada próxima. Cruzando o céu do chapadão divulgou uma linha se deslocando em "V", eram marrecos irerês rompendo o horizonte com seu voo cadenciado. Batiam as asas sincronicamente, certamente em migração do Rio Grande para o Araguari. Seis indivíduos, três de cada lado, cena bonita de se ver. Instintivamente o Hermógenes levou a mão à cintura e sacou o shimidt, seis estampidos ecoaram pelos ermos silenciosos do campo e os patos tombaram no chão, um após outro. Matara por pura maldade, nem se dera ao trabalho de conferir as vítimas.

No final da tarde já havia cruzado quase todo o chapadão. Quase chegando ao arraial, logo ao pé de uma encruzilhada, junto a uma porteira, divulgou um vulto montado numa mulinha trochada, era um rapazinho, negrinho com uns olhos enormes, mais negros ainda.

- Pó dexá qu'eu abro! Gritou ele. Já abrindo a porteira e permitindo a passagem de Hermógenes.

- Hô rapaz! tá indo pro arraial também?

- Tô indo sim sinhô. Respondeu o rapazola.

- Pois então vamos! Que eu tenho pressa! E se pôs a galope, com o negro o acompanhando, montado na mula.

- Tá vindo de longe o senhor?

- Venho é de Goiás, tenho saudade da minha terra! E você neguinho, que faz aí perdido?

- Nada não, tô catando o rumo das coisas.

Hermógenes, achou graça no jeito do negrinho, de certo não devia regular muito bem...

- Me diz uma coisa, o senhor é mesmo o Valentão Hermógenes Moura?

- Pois sou eu mesmo, por que a pergunta?

- É que eu venho trazendo um recado pro senhor.

- Que brincadeira é essa menino? Pois então diga logo, que eu não estou para conversas atravessadas!

- É por conta de uma promessa que fiz, e que agora tenho de cumprir, conforme é certo e direito. Prometi ao meu senhor Chico Simão, na horinha da morte dele, com as nossas mãos pousadas sobre a estampa de Nossa Senhora do Desterro, que faria valer a justiça em nome dele. E desde aquele dia que vim pro Arraial do Rio das Abelhas e tenho aguardado sua chegada, até o momento em que os garimpeiros deram notícia de que o senhor estava vindo. Agora estou aqui cumprindo meu destino! Portanto o senhor me desculpe, mas chegou a sua hora de achar paga para suas maldades! Gritou o Nego Bida, tirado uma winchester novinha, comprada com o dinheiro deixado pelo Chico Simão, e apontando bem no meio dos dois olhos ferinos de Hermógenes.

O valentão achou graça, o negrinho não regulava mesmo da cabeça. Onde já se viu ameaçar assim o temível Hermógenes Moura!

- Pois então se aprepare que te rasgo na bala moleque! Arreliou-se já sacando o shimidt do coldre. Mas os anos de desregramento em Goiás fizeram o Hermógenes relaxado, depois da matança dos patos no chapadão não se lembrara de recarregar o revólver, as seis balas ficaram na carne dura dos marrecos assassinados. Ao apertar o gatilho, apenas o "clic" metálico da arma sem espoleta.

Antes que Hermógenes pudesse tocar na espingarda papoamarelo presa no lombo do alazão, a descarga da winchester do Nego Bida explodiu em sua testa, abrindo-lhe o crânio e deixando uma marca de sangue que poderia se assemelhar ao desenho de uma cruz. O cavalo remancheou, atirando longe o corpo que atingiu o chão já sem vida.

- Nego Bida ainda achegou-se para conferir se o valentão já era mesmo um defunto, depois, com a alma serena e a sensação de dívida paga, esporeou a mula e desapareceu deixando um rastro de poeira no horizonte do chapadão, ficando estirado no chão o corpo inerte do valentão Hermógenes Moura.

No alto azul do céu, os urubus já adivinhavam carniça, voando em roda cada vez mais baixo.

*

Circundadas pelo muro de pedras limosas duas lápides descansam no chão de terra batida, ao pé da Igreja de Nossa Senhora do Desterro do Rio das Abelhas. Lado a lado Etelvino e Maria Luzia dormem sob as lajes de pedra lavada, inscrições em latim gravadas em letras góticas sulcadas na pedra, encomendam as almas aos céus.

Devorado pelas aves de rapina, Hermógenes não teve sepultura cristã, a notícia de sua morte correu a boca do povo, e na falta de um nome que respondesse pela autoria do crime, passou-se a acreditar que o próprio Diabo teria vindo acertar as contas com o valentão.

Nas noites de lua clara, são muitos os relatos de tropeiros e viajantes que contam ter visto sua alma errante vagando sem rumo, pelos ermos extensos do insondável Chapadão do Bugre.
* Esse caso me foi narrado em dezembro de 2008 pelo Sr. Vicente Hermógenes, enquanto descansávamos à sombra da tricentenária Igreja de Nossa Senhora do Desterro, em Desemboque. Nomes dos personagens e alguns fatos foram trocados para preservar a identidade dos envolvidos. Texto revisado em 2022.