CRÔNICA
VICENTE HERMÓGENES
Autenticidade e sabedoria
Alessandro Abdala e Carlos Alberto Cerchi*
Alessandro e Berto, os editores com o com o amigo e inspirador, Professor Vicente. Foto de Saulo Amui.
icente de Araújo Lima
Ou Vicente Hermógenes, como é conhecido, tornou-se uma figura folclorica e símbolo desemboquense. "Seu" Vicente representa a resistência ao processo avassalador do desmonte da cultura popular revelada na narração de causos, expressões regionais, lendas, cantigas, trovas populares e brincadeiras folclóricas. Todas essas manifestações culturais são temperadas com bom humor, camaradagem e com uma dose expressiva de criatividade. Para nós, mortais e produtos de uma geração assoberbada na pressa contemporânea, tivemos de reaprender a ouvir os causos para entender a sutileza do enredo que faz sorrir ou emocionar. Que faz dimensionar o ridículo na explosão do riso espontâneo ou reter as lágrimas na emoção da tragédia existente nos acontecimentos triviais ressaltados na narrativa parcimoniosa e verídica de “Seu Vicente”.
Tentamos escrever suas histórias, saíram desenxabidas e monótonas. Não refletem o seu jeito único de relatar sonhos, fantasias e verdades. Insossas, sequer são arremedos da cultura desenvolvida pela tradição oral, legado dos moradores do Desemboque à Vicente Hermógenes, pessoas que sentavam no banco de madeira, no tempo em que se tinha tempo.
Para os superficiais suas histórias nada revelam, necessário se faz buscar elementos, utilizar os dois ouvidos, poupar a voz, descobrir a magia dos contadores de historias, seres em completa extinção. Algo semelhante ao Desemboque em relação aos seus rebentos a oeste, a civilização triangulina esqueceu o Desemboque, sua historia, sua gente... Marqueteiros sufocam os meios de comunicação e substituem valores no processo de aculturamento.
As histórias de Vicente Hermógenes revelam sabedoria e acordam a cultura que agoniza nos sobreviventes dos contadores de histórias. Tiramos a limpo duas de suas histórias inusitadas no cabedal fantástico de aventuras imortalizadas na tradição oral que faz de "Seu Vicente" uma figura mística em extinção.

História nº 1:
“Sou descendente do Cônego Hermógenes.
-Padre não casa, como pode ser?
O tom das palavras ganha reverência, Seu Vicente Hermógenes responde, quase solene, para não dar margem de desrespeito à figura do antepassado ilustre:
- O Cônego era “possuidor” de duas mulheres, uma paulista morena e outra mineira, clara, aqui do Desemboque, eu sou descendente da mulher clara, completa.

História nº 2:
“Também em relação ao Cônego Hermógenes:
O Cônego não quis ser enterrado dentro da igreja como era “direito”dos padres e dos benfeitores da paróquia. Por ele se reconhecer pecador, o Cônego fez a devoção de ser enterrado bem na entrada da porta principal da Igreja de Nossa Senhora do Desterro em Desemboque.
- O Cônego Hermógenes queria que as pessoas pisassem no seu túmulo para entrar na igreja, como “penitência” por ter sido “possuidor de duas mulheres”, vontade testamentária.

Um pouco de Genealogia

O Cônego Hermógenes Cassimiro de Araújo Bruonswik foi vigário do Desemboque por quase meio século. Era Provisor de Capelas, dentre as quais originaram as cidades de Sacramento e Uberaba, surgidas no início do séuculo XIX quando o antigo Sertão da Farinha Podre era ainda um vazio demográfico pela então recente perseguição aos índios caiapós que sucumbiram à implacável intrepidez de Antonio Pires de Campos, e Bartolomeu Bueno do Prado, perseguidores de bugres e quilombolas.
Cônego Hermógenes chegou ao Desemboque com seus pais, Capitão Manoel Ferreira de Araújo e Souza e Joaquina Rosa de Sant'ana e irmãos vindos de Conceição do Mato Dentro no período de grande migração no interior do estado de Minas Gerais, por volta de 1805.
Ordenado Padre na cidade de São Paulo em 1810. De 1814 até a data de sua morte em 26 de setembro de 1861, foi vigário do Desemboque, tornando-se o vulto mais importante do Sertão da Farinha Podre, atual Triângulo Minério, área correspondente ao antigo Julgado Goiano (até 1816) de Desemboque.
Cônego Hermógenes ocupou praticamente todos os cargos de relevância na condição de Brasil- Colônia (até 1822) e Império, como membro do Partido Conservador, Comendador da Capela Imperial, Vigário e Deputado Provincial. Não é por acaso que o nome Hermógenes tornou-se sobrenome e popularizou-se na descendência Desemboquense tornando-se sinônimo de importância e orgulho familiar.
Em seus escritos sobre genealogia mineira, Hildebrando Pontes diz textualmente: “Hermógenes Cassimiro de Araújo Bruonwik deixou dez filhos naturais, havidos, o primeiro, quando ainda estudante em São Paulo, com uma jovem natural desta então Província, e cujo nome ignoro; os oito imediatos havidos com Ludovina Clara dos Santos, natural de Paracatu (MG), falecida no arraial do Santíssimo Sacramento aos 10 de dezembro de 1830, o último havido com Tereza Luiza das Neves...” (2)
Na sequencia, a descrição resumida de sua prole:

1- Inês Florinda da Silva e Oliveira, natural de São Paulo, nascida anteriormente a 1810 casada em primeiras núpcias com o Cap. José Manoel da Silva e Oliveira (Cap. Guarita), com geração descrita no original. Em segunda núpcias com Joaquim de Freitas Silveira (com geração).

2- Maria Justina Cassimira de Araújo Lima (Miquita), nascida em Desemboque onde faleceu, casada com o Paulista Francisco Lima, teve:
2.1- Major Cristino Adolfo de Araújo Lima.
2.2- Cap. Hermógenes Herculano de Araújo Lima, casado com Maria José da Silveira.
2.3- Francisco, falecido em pequeno.
2.4- Ricarda de Araújo Melo, casada (teve geração).
2.5- Capitão Galdino Justiniano de Araújo Lima, casado (teve geração).

3- Com. Antonio Eloy Cassimiro de Araújo - Barão da Ponte Alta - casado duas vezes, teve geração em ambos os casamentos.

4- Maria Delfina Cassimira de Araújo Santos, casada (sem geração)

5- Maria Cância Cassimira de Araújo, casada em primeiras núpcias com José Vieira Pontes e em segundas núpcias com Francisco de Oliveira França (não teve geração).

6- Carlos Cassimiro de Araújo, falecido solteiro.

7- José Maria Cassimiro de Araújo (Deca) casado com Maria Madalena Araújo (teve geração).

8- Maria Cassimira de Araújo Sampaio, casada com Antonio Borges Sampaio (teve geração).

9- Maria Filisbina de Araújo, casada com Manoel José da Silveira Araújo (teve geração).

10- Major Carlos Maria Cassimiro de araújo (Nhônhô) casado com Ana Rosa de Oliveira França (teve geração).

11- Major Aureliano Cesário de Araújo (Lério) casado com Ludovina Clara de Araújo (teve geração).

Do casamento de Hermógenes Herculano de Araújo Lima (2.2), com Maria José da Silveira nasceram os seguintes filhos:

1- Joana Nepumoceno de Araújo Lima, casada.

2- Capitão Francisco Antonio de Araújo Lima (Chiquinho Hermógenes) casado com Mariana Lucinda de Lima (teve geração) (3)

3- José Antonio de Araújo Lima, casado com Celestina de Melo (geração a seguir).
4- Rita de Cássia de Araújo Lima, casada com Rufino Ribeiro de Faria.

5- Avelino de Araújo Lima, falecido solteiro.

Do casamento ocorrido em 24 de abril de 1897, entre José Antonio de Araújo Lima e Rosalina Celestina de Melo, nasceram 14 filhos, dentre eles Vicente de Araújo Lima, ou Vicente Hermógenes. São eles: Zulmira, Adelina, Militino, Necécio, Militina, Demétrio, Euclides, Sosigenes, Alber, Vicente, José, Anair, Alexandre, Sebastiana.

Comprovação da primeira história: Hermógenes que gerou Maria que gerou Hermógenes Herculano que gerou José que gerou Vicente.
A confirmação da segunda estória está no testamento do Cônego Hermógenes (1) que expressa sua vontade da seguinte forma: “Falecendo eu da vida presente nesta freguesia, meu corpo será sepultado no adro, junto a porta principal da Matrix, envolto no hábito de São Pedro, paramentado com as vestes sacerdotais na forma do costume”

Vicente Hermógenes, depositário de uma dimensão abandonada e agonizante do Desemboque, pela sua vivencia, simplicidade e autenticidade representa a última cidadela das genuínas tradições incorporadas no patrimônio vivo, caminho do Desemboque e manancial de cultura.

Vicente Hermógenes, autêntico personagem do sertão do Desemboque, com igreja de Nossa Senhora do Desterro ao fundo. Foto de Alessandro Abdala em 2006.
A chuva intermitente que caíra nos primeiros dias do ano dera trégua na sexta-feira, véspera do dia de São Sebastião, em 19 de janeiro de 2006.

O objetivo da viagem era era encontrar o "Tabuleiro", lugar situado nos campos abertos e selvagens ao longo das margens do Rio das Velhas, cerca de 20 km para diante do arraial do Desemboque, hoje distrito de Sacramento MG.

Desemboque representa a gênese da ocupação do Triângulo Mineiro, de onde partiram bandeiras na devassa de serras, chapadões e vertentes, na geografia da mesopotâmia existente na parte ocidental da Serra da Canastra, entre os rios Grande e Paranaíba, confluentes do caudaloso Rio Paraná, que se forma após compor o “nariz” de Minas Gerais, no mapa político atual.
Historiadores apontam que Desemboque, primitivo núcleo de população branca na região da Serra da Canastra, surgiu na segunda metade da era setecentista, no período conhecido como “ciclo do ouro”. Mineiros vindos de Tamanduá, hoje Itapecerica, encontraram o precioso metal nas margens do Rio das Abelhas, hoje chamado "das Velhas" ou Araguari - para diferenciá-lo do seu homônimo, afluente do Rio São Francisco, este que também nasce na Serra da Canastra, na vertente oposta.

As primeiras catas exploradas pelo entrante primitivo, invasor dos domínios dos ferozes caiapós e dos negros quilombolas fugidos das Gerais, foram abertas nos terrenos do Tabuleiro. As pistas para sua localização encontramos nos depoimentos de Seu Vicente e no livro “História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central” de Hildebrando de Araújo Pontes:
Chuva de janeiro no Chapadão do Zagaia. Foto de Alessandro Abdala.
"Após algun dias de marcha, transposto o Rio São Francisco, depararam, adiante, um grande rio, em cuja margem esquerda, descobrindo ouro em abundância, se estabeleceram em um campo elevado que, por isso se chamou Tabuleiro. Aí se enregaram ao trabalho da mineração que já não oferecendo grande interesse, fora abandonado.”
Hidelbrando Pontes.
História de Uberaba e a Civilização do Brasil Central -1978.
O Tabuleiro seria hoje o Desemboque, não fosse o ataque dos caiapós aos primeiros garimpeiros. O confronto do branco invasor com os índios resultou na retirada dos faiscadores para a região do atual Desemboque, onde o ouro de aluvião também aflorou em abundância.

Cerca de 260 anos após esse fato, estávamos em busca do misterioso local, ainda mais antigo que o velho Desemboque, núcleo originário irradiador da povoação do antigo Sertão da Farinha Podre, região de grande importância política e econômica para Minas Gerais e a região Sudeste.
Local do antigo Tabuleiro, povoado precursor do Desemboque. Foto de Alessandro Abdala em 2006.
Retornar a esse passado é também revisitar as contradições históricas e as incertezas de uma memória ancestral, preservada nos últimos remanescentes capazes de enriquecer a história com vestígios concretos. Esses indícios conferem significado ao processo de ocupação desta região do Brasil Central, moldado por homens de diversas etnias e pelo legado de bravura, conflitos, heróis e vilões, opressores e oprimidos – tudo documentado sob a ótica e o arbítrio dos historiadores.
Mapa ilustrativo, sem escala, indicando a localização do Tabuleiro. Desenho de Alessandro Abdala.
Buscamos registrar as memórias de Vicente Hermógenes, de 86 anos, guardião da tradição oral, reforçada pela leitura do livro de H. Pontes que possibilita a identificação do Tabuleiro mais de dois séculos depois. Ou, ao menos, fornece subsídios valiosos para estudos mais aprofundados para recuperar a memória regional e confirmar o caminho percorrido pelos primeiros entrantes do Triângulo Mineiro.
Professor Vicente Hermógenes, guardião da tradição oral do Desemboque. Foto de Alessandro Abdala em 2006.
Encontramos evidências do antigo povoado 18 km rio acima do distrito de Desemboque, em um local que coincide com as descrições históricas: uma vasta planície na margem esquerda do rio das Velhas, em formato semelhante a um tabuleiro, contrastando com as serras e depressões da região.

Outros indícios reveladores incluem a presença de um pequeno riacho chamado “córrego do Tabuleiro” – conforme depoimento de Vicente Hermógenes; e os vestígios das antigas catas de garimpo, evidenciados pelos montes de pedra lavada, restos da mineração artesanal que mostram a intensa atividade humana ali ocorrida em tempos passados.
Eurípedes e Alessandro sobre o cascalho lavado no período do “Ciclo do Ouro”.
Dezenas de grupiaras indicam a presença do garimpeiro no passado. Foto de Berto Cerchi em 2006.
Uma capoeira abriga barrancas escavadas e abandonadas, sinais da busca incerta pelo ouro de baixa qualidade no cascalho compacto, que um dia alimentou os sonhos de riqueza dos pioneiros que se estabeleceram nas margens de córregos e rios desemboquenses.

O lugar encontra-se na Fazenda Alvarenga, uma das propriedades originárias do latifúndio Bonsucesso, derivado da Fazenda Nova Suécia, de propriedade do Cônego Hermógenes Casimiro de Araújo Bruonswick, inventariada em 1862.

Atualmente (2006), a área é ocupada por pastagens para criação de gado, cujos proprietários residem em Uberaba.

Do outro lado do Rio das Velhas, município de Tapira, encontra-se a “Mata Grande”, onde ainda existem vestígios arqueológicos de ocupação indígena.
Professor Berto mostra o cascalho amarelecido, retirado das grupiaras ainda
presentes nas barrancas do "Córrego do Tabuleiro". Foto de Alessandro Abdala em 2006.
Enfim, havíamos cumprido a proposta de verificar o local primitivo, com referências plausíveis do Tabuleiro.

No Desemboque mergulhamos no “poço do Biba”, no córrego das pedras, divisa natural da Fazenda Nova Suécia, latifúndio no qual se encontra a Fazenda Alvarenga e dezenas de outras propriedades, chegando até o ribeirão da Parida, divisa do Parque Nacional da Serra da Canastra.

Desemboque agoniza vítima do abandono e do ostracismo. Uma faixa de pano na fachada de uma casa coberta por telhas de amianto, exibe a campanha eleitoral do prefeito eleito, também responsável pelo estado do lugar.

Outra faixa, pendurada no casarão colonial, revela o processo de aculturação incentivado pela administração pública.
Professor Berto (1950-2023) do alto da colina contempla uma de suas maiores paixões: o povoado de Desemboque.
Foto de Alessandro Abdala.
No minguado contingente de pessoas que hoje moram em Desemboque, não há vestígios do opulento Julgado Goiano, que até 1816, abrigou diversas etnias.

Contudo, existe uma atmosfera de preservação na natureza: rios de água extremamente limpas, pássaros livres, de cantos inexistentes no nosso mundo de cidades barulhentas onde o individualismo prospera.

O dia está terminando, percorremos o caminho de volta rumo ao poente.

No retorno a Sacramento, permanecem as indagações desafiadoras que nos levam a um olhar crítico e reflexivo.

Estrada de cascalho e areia, terreno de frágil consistência. Nas cercanias, acentuadas erosões. Voçorocas profundas causadas pelo uso equivocado da terra.

Além, as florestas contínuas de pinus e eucaliptos tomam o lugar dos cerrados originais ao longo da estrada que corta os Chapadões do Zagaia e do Bugre – nomes que resistem, embora os chapadões tenham desaparecido.

Casas abandonadas revelam o êxodo rural e mantêm vivas as crenças em assombrações, ilustradas pelas histórias dramatizadas por "Seu Vicente."
A visão do poente a partir do povoado de Desemboque. Foto de Alessandro Abdala.
Após cruzar a ponte sobre o ribeirão Rifaina, o padrão das terras muda e revela a fertilidade do solo de basalto decomposto. Lavouras e pastagens mostram por que a agricultura substituiu a exploração do ouro, motivando a migração das famílias para oeste do Desemboque, que povoaram as cidades de Sacramento, Uberaba, Uberlândia e outras da vasta região triangulina.

Ao longe, a claridade de Sacramento nos lembra da modernidade e sua maior e mais romântica invenção: a luz.

Este ensaio não tem pretensões acadêmicas ou de rigor histórico, embora possa servir como guia para quem deseje aprofundar-se no tema. Ele atende, oportunamente, à demanda por autoidentificação cultural e pela busca de nossas origens como um fator essencial de cidadania

Essa busca remete à dor existencial provocada pela angústia das contradições internas que marcam a trajetória humana.

Os sentimentos universais despertados pela busca por identidade revelam a necessidade de escapar do isolamento e construir o conhecimento essencial para responder a perguntas primordiais: de onde viemos e por que estamos aqui?

As contradições persistem, e repeti-las é uma forma de manter viva a busca por respostas.

A literatura oferece aos mortais a oportunidade de “ouvir vozes falando de tudo, de todas as formas possíveis.”

Precisamos desse espaço — ousamos considerá-lo sagrado e absolutamente necessário.
*Crônica originalmente publicada na Revista Destaque In, n. 72. Novembro de 2006. Revisada em 2024.