Comecinho de 2012. Chuva, chuva e mais chuva. Cinco dias escorregando na lama a bordo de uma valente Toyota Bandeirante 1962. Eu era o guia do amigo João Souza em busca de um ícone da Serra da Canastra, a ameaçada e poderosa águia-cinzenta.
A Canastra tem disso, às vezes começa a chover e não para. Negras e pesadas nuvens ocupavam permanentemente o céu e despejavam uma torrente diluvial que ameaçava engolir tudo, inclusive a gente.
Ficamos encravados, mesmo num 4x4, e fomos arrastados por um trator. Encharcados, caminhamos pelos chapadões, cerrados e topos das montanhas, sentindo a chuva e o vento frio na pele, tendo as nuvens literalmente ao alcance da mão. Fizemos grandes registros da fauna do cerrado, olhamos dentro dos sinistros olhos do mocho-dos-banhados, mas não havíamos conseguido ver a águia. E aquele era o quinto dia. O dia da partida, nossa última chance.
Era o alto de uma colina, cortada pela lamacenta estrada de terra vermelha. Ao longe, uma árvore morta, à beira do penhasco. Os galhos cascudos e retorcidos projetavam-se para além da linha das copas. E de repente o João avistou algo. Era grande, imponente, estava pousado de costas e a silhueta negra se destacava da neblina azulada que serpenteava os vales ao fundo.
Era a águia! só podia ser... a emoção tomou conta! Enfim faríamos o registro tão desejado! E a chuva engrossou. Mas bem agora!? E se o bicho voasse? Resolvemos nos aproximar mesmo com chuva... dane-se o equipamento!
Esgueiramo-nos por entre um trecho de cerrado um pouco mais fechado que desembocava numa clareira com pedras, de onde se podia ver com mais nitidez os galhos da árvore à beira do abismo. Dali já se podia fazer um registro. Olhamos através das lentes e descobrimos, espantados, que não se tratava da águia-cinzenta, mas sim de um jovem urubu-rei, ainda com a plumagem escura de antes da muda.
Espera... tem outro ali! Um adulto! Incrível! Não era a águia, mas era tão bom quanto! Esse era um bicho que a gente só via planando alto... e agora ali, pousado a poucos metros!
Nos aproximamos as aves não voaram, talvez devido a chuva, que agora parecia ainda mais grossa. O visor da câmera embaçava, a água escorria por baixo da camisa, colando-a no peito, mas não importava. Era fantástico encher o quadro da câmera e compor uma bela imagem daquela espécie tão arisca, agora calmamente pousada a poucos metros.
Tremíamos de emoção e nos entreolhávamos com um misto de reverência e incredulidade. Foi um momento mágico.
Graças a generosidade do amigo João, naquele dia fiz uma das fotos mais importantes da minha carreira como fotógrafo de natureza. Naquele ano, essa bela imagem do urubu-rei sob as gotas congeladas de chuva ficou entre as finalistas de um dos mais importantes concursos de fotografia de natureza do mundo e acabou publicada em uma
luxuosa edição do Handbook of the Birds of the World. Hoje, ela ilustra meu livro sobre as aves da Serra da Canastra, recém publicado.
Ali nasceu uma grande amizade passarinheira. Eu e João nos encontramos muitas vezes depois, vimos e registramos juntos muitos outros bichos lindos. Mas acho que jamais sentiremos novamente a emoção que experimentamos naquele pedaço de Cerrado, no alto daquela colina, molhados de chuva e tremendo de frio e emoção enquanto contemplávamos toda a majestade do "Rei do Cerrado".
Naquele dia a natureza falou conosco e revelou toda a sua magnitude. Fizemos nossas fotos e voltamos caminhando em silêncio em direção à Bandeirante. Acho que pensávamos em Deus.
Sacramento, Serra da Canastra, MG - Brasil, Janeiro de 2018.
*Artigo originalmente publicado na Revista Destaque In, n. 94, mar 2018.
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